A pesquisa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) mostrou que mais de 60% dos lares chefiados por pessoas autodeclaradas pardas e pretas sofrem com algum tipo de insegurança alimentar no país. A situação é ainda mais grave entre as mulheres negras, quando apenas 30,1% dos domicílios chefiados por elas não possuem algum tipo de insegurança alimentar. Para falar sobre o assunto, o Edição do Brasil conversou com o professor titular de sociologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Jorge Alexandre Neves.
Qual a diferença entre fome e insegurança alimentar?
Existem três níveis de insegurança alimentar: leve, moderada e grave. A primeira é quando uma família vive com receio da falta de comida. A segunda ocorre no caso da falta de alimentos e os indivíduos daquele lar já não conseguem fazer as três refeições no dia. E a grave é a fome, quando não há comida suficiente para alimentar todos da casa diariamente.
Como podemos explicar esses dados?
Essa parte da população é também a mais vulnerável financeiramente, sofre sérios problemas de discriminação, além de ter vários mecanismos que fazem com que haja uma desigualdade educacional grande. Ainda enfrentam dificuldades no mercado de trabalho, por conta do preconceito, fazendo com que tenham renda significantemente mais baixa do que a população branca. Esse é um dos principais motivos que levam essa parcela da sociedade à insegurança alimentar.
Você acredita que políticas ultraliberais ajudaram no aumento da insegurança alimentar?
Com certeza, tanto por ter aumentado a pobreza e ter precarizado o mercado de trabalho, quanto por fatores de administração, como o fim da política nacional de armazéns públicos de estoques reguladores de alimentos, fazendo com que o preço deles disparasse.
A inflação dos alimentos foi muito maior do que a geral, criando grande dificuldade de acesso a uma refeição de qualidade para a população de menor renda. Além do corte de recursos para merenda escolar e o fim do sistema de compras do pequeno produtor.
Quais são as consequências que a insegurança alimentar pode trazer para a sociedade?
Os impactos são enormes. A família que passa fome, por exemplo, tem que gastar todo o tempo pensando em como conseguir comida, tirando a atenção de outros importantes fatores, como a educação dos filhos, causando um problema muito sério em longo prazo. Na insegurança alimentar moderada e grave, ainda temos a piora no desenvolvimento cognitivo das crianças e a produtividade no trabalho dos adultos também é afetada.
A narrativa de que o agronegócio é responsável por alimentar as famílias brasileiras se sustenta na prática?
Essa narrativa é falsa, visto que 70% dos alimentos consumidos pelos brasileiros vêm da agricultura familiar. É lógico que o agronegócio também contribui com os outros 30%. Isso não quer dizer que ele não seja importante para o Brasil, mas o efeito dele é maior em termos de gerar divisas ao país. Seu impacto na balança comercial na questão das exportações é maior do que na própria alimentação da população nativa.
O Brasil havia saído do Mapa da Fome em 2014. O que é possível aproveitar do que aprendemos no passado e o que precisaria ser revisto?
É possível aproveitar tudo que já fizemos antes e o atual governo federal está retomando todas aquelas políticas públicas para tirar o país novamente do Mapa da Fome. O maior desafio é como tornar as políticas de segurança alimentar em políticas de estado, que não sejam abaladas pela intempérie política e tudo não seja destruído de novo.