O plenário da Câmara dos Deputados aprovou, no dia 19 de maio, o Projeto de Lei (PL) 1.388/22 que autoriza o estudo domiciliar no Brasil. Atualmente, a prática não é permitida no país por uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). Nessa modalidade, a criança e o adolescente não frequentariam a escola tradicional. Em vez disso, eles seriam educados em casa pelos pais ou preceptores.
A medida vem recebendo críticas por parte das entidades do setor que assinaram um manifesto contra a liberação do ensino domiciliar (homeschooling). Para discussão acerca do projeto, o Edição do Brasil conversou com Teodoro Zanardi, doutor e docente em programa de pós-graduação em Educação.
A aprovação do homeschooling condiz com a realidade da educação no Brasil?
O projeto aprovado pela Câmara não dialoga com a qualidade da educação brasileira. Ele atende a interesses bem específicos que não dizem respeito a questões que nós tivemos no ensino remoto ou ainda na ausência do ensino. Hoje, a gente tem diagnósticos de que esse período da pandemia e de suspensão das aulas presenciais trouxe prejuízo para o desenvolvimento das crianças. O ressurgimento desse PL está mais voltado para aquilo que era uma promessa eleitoral deste governo e que, agora, há essa tentativa de se concretizar para atender a vontade de algumas famílias defensoras dessa prática.
Você acredita que a educação domiciliar é capaz de desenvolver o pensamento crítico e o nosso papel como indivíduo na sociedade?
De forma alguma. É claro que a pessoa pode ter esse senso independentemente da instituição, mas o ambiente escolar é importante para o desenvolvimento desse pensamento crítico que está ligado a uma visão mais ampla da sociedade. O ensino domiciliar tem como foco a supervalorização da educação que a família distribui por meio dos seus valores, mas ela não substitui o papel da escola, que é conhecer a diversidade de tendências ideológicas e teóricas e, dificilmente, em casa existe a possibilidade de avançar nesse campo.
A falta de convívio, troca de experiências e interações com outros indivíduos da mesma idade, pode trazer prejuízos ao desenvolvimento do estudante?
Sim, é importante dizer que estabelecemos um panorama geral, mas não significa que todo caso seria dessa forma. Porém, a escola tem esse potencial de convivência que amplia a visão do sujeito para a vida em sociedade. A educação familiar parte de uma premissa que tem grandes problemas, que é preparar a criança para a vida em sociedade, isolada da própria convivência social mais ampla, então quando isso acontece você tem uma relação de causa e efeito que não se concretiza. Vivendo as contradições, conflitos, amizades e socializações que a escola promove, efetivamente vamos aprender a conviver melhor com a diferença e a diversidade.
Segundo dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), 90% dos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes são registrados no ambiente familiar. A prática do homeschooling dificultaria ainda mais as denúncias destes crimes?
Não temos casos que identifique uma relação entre a defesa da educação domiciliar e o abuso infantil, mas obviamente, a escola é um lugar que a sociedade pode perceber o que está acontecendo em casa. Inclusive, uma das questões que defensores do homeschooling revelam é o combate a discussão de gênero e sexualidade na instituição e, geralmente, são nesses debates que aparecem a questão da violência sexual, que pode acontecer no ambiente doméstico. E a escola tem o dever, de acordo com a legislação, de notificar as autoridades, pois ela faz um controle importante para a sociedade do resguardo do direito da integridade física e moral dos estudantes.
O PL permite que a educação domiciliar seja feita por preceptor, porém não existe uma regulamentação que garanta a adequação desse indivíduo para lecionar. Isso abriria espaço para que centros informais de ensino fossem criados e popularizados?
Sem dúvida. Esse é um dos grandes pilares da educação domiciliar, essa livre escolha dos pais sobre quem vai promover a educação que seria proporcionada pela escola. Pode ser o preceptor, o próprio responsável, ou um computador por meio de plataformas. Nós, como sociedade, deveríamos estar preocupados em melhorar as condições de qualidade das instituições ao invés de tentar substituí-las.
A regulamentação da educação domiciliar pode contribuir ainda mais para o aumento da evasão escolar no país?
Sim e esse é um dos pontos centrais. Antes da pandemia, havia 1 milhão de crianças de 4 a 17 anos fora da escola e o Brasil tem dificuldade em desenvolver ferramentas para a permanência desses alunos. Com a educação domiciliar, que tipo de fiscalização nós estamos pensando? E aqueles que não estariam estudando nem em casa nem na instituição? Ou seja, nossos instrumentos são muito falhos hoje, pensando nessa porteira aberta que seria a educação domiciliar para a desescolarização, teríamos a ampliação dessa exclusão.