Nunca o velho Guimarães Rosa foi tão citado e acertou tanto. “A vida quer é coragem” em todos os tempos. Riobaldo, diante dos mistérios colocados pela vida, ruminava palavras certeiras como se soubesse da ameaça do novo coronavírus. Na boca de Riobaldo, o médico mineiro que respeitava a ciência popular, mostrava que nem todos os mistérios entre o céu e a terra estão resolvidos ou explicados. Nunca estarão. Dificuldades e novos tempos sempre aparecerão por aí. Estamos vivendo momentos difíceis e desafiadores. O mundo está triste e desconfiado. Enquanto o novo normal não se estabelece, convém olhar para o passado e definir as regras do presente e projeções para o futuro.
Os verdadeiros líderes são revelados nas crises. Faltam exatamente referencias assim num momento grave como estamos vivendo. A Organização Mundial da Saúde (OMS) falhou e perdeu a autoridade do comando. A diretoria se demonstrou tão frágil que pode ter ameaçado inclusive a continuidade do processo. Esta falha grave pegou pela frente uma linha que cresceu muito em não reconhecer estas instituições. O globalismo está em debate. Não é o questionamento da globalização, mas o reconhecimento de líderes mundiais que não passam por voto direto e querem assumir autoridades sobre governantes estabelecidos. O argumento é forte e ninguém aceita mais passivamente que diretores destas siglas mandem em presidentes legalmente e diretamente eleitos. O presidente americano Donald Trump cortou as verbas para a OMS e fez acusações pesadas. A China, segundo o presidente, dominou a atual diretoria. Fica difícil provar o contrário, diante das últimas defesas e posicionamentos. Ficou, portanto, inviabilizada a possibilidade de uma coordenação e liderança internacional neste processo.
Por aqui, o governo central perdeu a mão. Logo no início do processo o então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, criou o gabinete de crise e reuniu secretários estaduais. A estratégia foi a transparência e monitoramento. De cara o governo se dividiu. Aliados do presidente Jair Bolsonaro identificaram um alarmismo e alinhamento com empresas de comunicação “adversárias” do governo. O presidente Jair Bolsonaro comprou esta tese e inviabilizou Mandetta e futuros ministros que não seguissem a linha do núcleo do governo. Neste momento não havia nenhuma confirmação de caso no Brasil.
Uma legislação foi elaborada pelo então ministro da Justiça, Sérgio Moro. O texto aprovado em tempo recorde pelo Congresso, em dois dias, é rigoroso. Dá à polícia poder para prender quem desobedeça a quarentena e criminaliza o ato do infectado abandonar o afastamento social. Esta lei acabou chegando ao presidente e o impediu de sair do isolamento no Palácio enquanto o resultado do exame indicou a presença do coronavírus.
O relato de Mandetta ao presidente Bolsonaro assustou. “Presidente, vamos atravessar um desfiladeiro”, disse de forma grave. Explicou que essa travessia poderia ser desorganizada, em correria e no salve- -se quem puder. A quantidade de mortos neste caso seria grande. “Caminhões do Exército vão recolher corpos nas ruas”, exagerou o ministro. Outra opção era uma travessia “coordenada, de mãos dadas e de forma segura”. Neste caso haveria mortos, mas em menor número e o grande argumento seria o sistema de saúde. O velho Sistema Único de Saúde (SUS) estava sendo colocado a provas. O ministro já tinha escolhido o trajeto programado e considerava fácil convencer o presidente. Só que o presidente já tinha escolhido outra trajetória e não contava com a dificuldade de convencer o ministro. Alguma coisa estava fora do lugar, o famoso “rabo que balança o cachorro”. Esta é a origem da divergência que dividiu o país. Acabou a possibilidade de coordenação central e o Supremo Tribunal Federal apenas entrou nesta divisão e determinou que os estados e municípios ficam com autonomia para definir as regras e que a Justiça manda nas decisões clássicas do Executivo. Foi o início da pandemia jurídica. Quer saber o que vai acontecer na sua região? Olha o que definiu o juiz da comarca.
Sem coordenação certa a seguir, a pandemia corre e o segredo é viver momento a momento. Só o tempo mesmo vai definir se a quarentena funcionou ou não. O argumento do presidente de que o cuidado com a vida econômica é tão importante como a tentativa de reduzir as consequências do vírus será também avaliado. O momento é de se falar em avaliação histórica porque não há consenso sobre o presente. Voltamos a Guimarães Rosa: “O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”
*José Maria Trindade
Jornalista, correspondente da Rede Jovem Pan e comentarista da Rede Vida de Televisão
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