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Doença de Chagas: 110 anos de negligência

Em 1909, o médico Carlos Chagas anunciava à comunidade científica a detecção do protozoário Trypanosoma cruzi, agente causador da doença de Chagas, em humanos. Mais de um século depois, o Brasil não tem o que comemorar. O país responde por 70% das mortes anuais pela doença na América Latina. Muitos são os fatores apontados para esse índice: falta de investimentos em pesquisas voltadas para prevenção e controle, de conhecimento pelos profissionais de saúde sobre diagnóstico e tratamento e o desconhecimento da população infectada. Estima-se que 6 milhões de pessoas em 21 países latinos sejam infectadas pelo protozoário. Desse total, segundo dados do Ministério da Saúde, pelo menos 1 milhão estão no Brasil.

Ignorada pela indústria farmacêutica, a doença costuma ter endereço: as casas dos mais pobres. Calcula-se que 70 milhões de pessoas estejam vulneráveis a contrair Chagas por motivos ligados à pobreza. Para muitos que vivem em grandes centros urbanos pode haver a impressão equivocada de que a doença é do passado. Mas ela continua presente, concentrada em países subdesenvolvidos, em áreas rurais remotas, em favelas e áreas urbanas sem saneamento.

Fonte: dndial.org

O mal pertence ao grupo de doenças tropicais negligenciadas da Organização Mundial da Saúde (OMS). “Elas recebem esse nome porque apesar de haver necessidade do desenvolvimento de novos medicamentos, o investimento financeiro e de recursos humanos feito pelas grandes indústrias farmacêuticas nessas doenças é muito baixo”, explica a pesquisadora Rafaela Salgado Ferreira, que comanda o laboratório de modelização molecular e de concepção de medicamentos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde concentra suas pesquisas em tratamentos mais eficazes para a doença de Chagas.

Segundo a pesquisadora, o benznidazol, único remédio disponível para o tratamento dos chagásicos no Brasil, foi desenvolvido nos anos 1970 e tem eficácia limitada, além de diversos efeitos colaterais. “Quando as indústrias farmacêuticas vão selecionar quais medicamentos serão desenvolvidos, elas focam em doenças que geram mais lucro. Enfermidades que afetam a população mais rica e as crônicas em que pacientes precisam do remédio por toda a vida são privilegiadas”, ressalta a mineira de 36 anos que recebeu, no ano passado, o prêmio Rising Talents, concedido pela Fundação L’Oréal em parceria com a Unesco, pelo esforço em tentar mudar essa realidade.

Vitória no passado,
retrocesso no presente

As campanhas de combate ao barbeiro, principal vetor da doença, reduziram significativamente os índices de transmissão. Em 2006, o país conquistou o certificado de interrupção da transmissão por esse vetor, concedido pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). Hoje, a maior parte das novas infecções ocorrem por transmissão de mãe para filho e, sobretudo, pela ingestão de alimentos contaminados, principalmente o açaí in natura.

Juarez Ferreira, 62, descobriu por acaso ser portador da doença quando foi doar sangue em 1995. “É muito provável que tenha sido picado pelo barbeiro, visto que era comum vê-los nas casas feitas de pau a pique, cheias de barro”, conta o cortineiro que é de Ladainha, no Vale do Mucuri, região endêmica para o barbeiro. Com diagnóstico tardio, a mãe de Ferreira morreu aos 52 anos vítima de Chagas.

O diagnóstico aos 23 anos foi fundamental para que, hoje, Maria Édina Camarinho, 51, viva com saúde. “Em resumo, estou bem. Mas já perdi minha mãe, pai, irmãos, primos e amigos devido à doença. A última foi minha irmã há 5 anos. Ela estava em tratamento, mas teve um infarto com 39 anos”, conta. A doméstica acredita que foi infectada ainda bebê. “Meus pais falavam que a casa onde morávamos era infestada de barbeiros”.

Tratamento
Se tratada no início da fase aguda, a chance de cura beira os 100% – no entanto, os sintomas podem levar até 30 anos para aparecer, quando a fase crônica já está instalada. A cardiologista Rosália Torres esclarece que na fase aguda, a maioria dos casos não apresenta sintomas, quando ocorrem, duram cerca de 2 a 4 meses e podem incluir erupções de pele e nódulos inflamatórios, febre, dor de cabeça, gânglios linfáticos aumentados, náuseas, diarreia, vômito e dificuldade para respirar. “Na fase crônica, quando acomete o aparelho digestivo, pode causar dilatação do esôfago, que se manifesta por dificuldades para engolir os alimentos, ou dilatação do cólon, que se manifesta por constipação”.

O diagnóstico é feito por exame de sangue e pela investigação das possíveis alterações no coração e no sistema digestivo. Para determinar, as equipes de saúde precisam fazer de dois a três exames de sangue.