“A fome dói e é humilhante”. É assim que K.S* resume a atual situação em que se encontra com sua família. Casada, mãe de 5 filhos, ela, que é faxineira, está sem serviço há 10 meses. Enquanto isso, seu marido, que é pedreiro, mas está impossibilitado de trabalhar devido a um problema na coluna, não atua no mercado há mais de 1 ano.
Toda a situação levou a família a uma realidade delicada: a fome. “Nunca imaginei passar por isso. A gente pensa que é algo que acontece em comunidades muito pobres, lugares onde não tem nem água e luz, mas não. Moro na cidade grande e, ainda assim, estou sofrendo. Minha família não é a única”.
E ela tem razão. De acordo com um relatório da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), a fome atinge um em cada três brasileiros. Segundo a pesquisa, o número de pessoas que lidaram com algum tipo de insegurança alimentar foi de 61,3 milhões, número alarmante considerando que a população brasileira é estimada em 213,3 milhões. Esse marco levou o país a retornar ao mapa da fome de onde havia saído em 2014.
O cientista político Rudá Ricci explica que, em pouco mais de um ano, o Brasil somou a esse índice mais 14 milhões de pessoas passando fome. “O número dobrou em famílias que têm crianças com menos de 10 anos. Pior, apenas 40% delas têm acesso pleno à alimentação. Em 2014, 17% da população se encontrava em situação de insegurança alimentar. Enquanto que em 2019, ano anterior à pandemia, a fome já atingia 30% da população. Em 2021, saltamos para 36%. Portanto, o governo Bolsonaro é responsável direto pela condução de políticas sociais e econômicas que aumentaram a fome, uma vez que desmontou grande parte das políticas sociais”.
Ele acrescenta que a política econômica ultraliberal foi insensível até que o auxílio emergencial foi imposto pelo Congresso Nacional, em 2020. “O ultraliberalismo considera que políticas sociais robustas geram inflação e prejudicam a competitividade das empresas que, teoricamente, passam a custear esses gastos. O discurso ultraliberal é elitista e é herdeiro da concepção de casta que foi implantado no Brasil e deitou raízes em nossa cultura”.
Para ele, esse cenário só irá mudar a partir da criação de políticas sociais, de emprego e renda que não são promovidas por caridade ou redes privadas (o que se convencionou denominar de Terceiro Setor). “Temos que abrir um amplo debate nacional para revertermos esta tragédia de sermos a 13ª economia mundial e o 7º país mais desigual do mundo”.
Enquanto esse quadro não muda, pessoas se mobilizam para tentar assistir às famílias que se encontram em vulnerabilidade. Como é o caso do Grupo Scheilla, da Casa Espírita André Luiz. “Há um tempo recebíamos cerca de 15 novos pedidos de ajuda por semana, agora subiu para 30. Para tentar levar conforto, distribuímos cestas básicas. Atualmente são 460 cestas para as famílias que estão cadastradas mensalmente, além das 60 cestas emergenciais para pessoas que nos procuram no dia a dia. Atuamos também com a população em situação de rua, levando café da manhã, almoço, corte de cabelo e barba”, explica Adriane Silva, representante do projeto.
O projeto Alimentar também atua no auxílio dessas famílias. “A gente faz um trabalho de acompanhamento mensal fornecendo cesta básica de 15 em 15 dias e, também, todo um acompanhamento psicossocial, no qual encaminhamos para agência de empregos, programas de jovem aprendiz, estruturação familiar a fim de melhorar a qualidade de vida e autoestima desses indivíduos”, esclarece a coordenadora Márcia Zimmermann.
K.S* se inscreveu em um programa e, agora, espera a vez de sua família ser assistida. “Antes, eu pegava cesta básica em uma igreja aqui perto de casa, mas as doações são poucas e eles não estão conseguindo atender a todos. Depois descobri esse projeto e me cadastrei. Até lá, vou vivendo um dia de cada vez e com fé em tempos melhores”.
Situação grave
A ONU ainda alertou que o mundo tem se afastado cada vez mais do objetivo de erradicar a fome até 2030. Em todo o planeta, a situação é grave. Segundo a FAO, cerca de 828 milhões de pessoas foram afetadas pela fome em 2021. O número cresceu cerca de 150 milhões desde o início da pandemia.
*A pedido da personagem, seu nome foi preservado.