Em uma entrevista com o então ministro da Educação, Cristovam Buarque, perguntei sobre a proliferação das faculdades pelo Brasil. O debate era sobre a qualidade de ensino. Famoso pelas prontas respostas e um grande frasista, Cristovam resumiu: “Eu estaria preocupado se você estivesse me dizendo que há uma proliferação na abertura de botecos pelo país”. Um discurso de que a pior faculdade é melhor do que a não faculdade. Há controvérsias sobre esta avaliação quando vem do governo. É correto dizer que a qualidade do ensino caiu e muito.
O bom ensino começa no fundamental e o superior cobra as consequências. Ver um advogado devidamente registrado na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) confundindo “O Príncipe”, de Nicolau Maquiavel, uma peça importante do renascentismo e fundamental para a filosofia, com “O Pequeno Príncipe”, de Saint-Exupéry, romântico e água com açúcar com a frase sobre fins que justificam os meios que não é de nenhum dos dois, dói nos ouvidos de quem pensa.
Nenhuma outra profissão no Brasil é tão vigiada como a de advogado. É preciso fazer o exame da Ordem para garantir o direito ao trabalho. A prova não é fácil e muitos são reprovados. Há, inclusive, uma associação dos bacharéis em direito que reivindicam o direito ao trabalho, sem a carteirinha da Ordem dos Advogados. Este debate já passou pelo Supremo que garantiu o monopólio dos inscritos na Ordem. Só eles podem trabalhar no mercado. O argumento é de que se trata de defesa da liberdade, do patrimônio e direitos. Mas médicos, enfermeiros, engenheiros, fisioterapeutas e mil outras profissões também são importantes, atuam em áreas sensíveis, mas não passam por teste para obter a autorização de trabalho. Apenas a conclusão do curso e inscrição no conselho. Mesmo com esta vigilância, os advogados estão agora na berlinda. Erros graves que levam juízes a momentos de irritação.
Os “doutores” agora enfrentam uma nova realidade: a tecnologia. Nos tribunais superiores são poucos os processos remanescentes com as tradicionais pilhas de papéis. Agora tudo é digitalizado. O que já seria uma novidade. Só que o próprio conteúdo está em debate. Chegaram aqui três casos em que juízes simplesmente rejeitam pedidos de advogados que usaram os programas de inteligência artificial. Já existem aplicativos que identificam as cópias criadas por programas e não por profissionais. Em dois casos, além de não conhecer (nem analisar mérito) os juízes representaram contra os profissionais na OAB por fraude e roubo intelectual.
Analistas alertam que as profissões do futuro ainda nem existem. Um dos fortes atingidos pela tecnologia serão certamente os advogados. Aliás, já foram. Hoje os departamentos jurídicos das grandes empresas contavam com muitos funcionários. A redução da demanda é visível. Um e pronto. Ou um escritório terceirizado.
A grande questão agora é a disputa entre máquina e humano, saindo dos trabalhos de rotina ou de força. Nestes setores, a máquina já ganhou de goleada há muito tempo. Agora é na produção intelectual. A diferença básica é que a tecnologia sai da rotina e toma decisões lógicas e até subjetivas. Lembro muito bem da disputa entre o computador e o campeão de xadrez, Garry Kasparov. O enxadrista duelou com a máquina e, em 1996, triunfou sobre o IBM Deep Blue programado para jogar xadrez. Mas por pouco tempo.
A depressão do campeão e de muitos outros, com a vitória definitiva da evolução do computador já está para trás. Só que agora é produção intelectual. Com advogados que no plenário do Supremo brigam com os juízes que vão julgar os seus clientes e cometem erros grosseiros em uma visível falta de preparo técnico, temos que reavaliar. Os programas de inteligência estão dando gargalhadas. Eles sabem o que está acontecendo e convencidos de que fariam diferente e melhor, muito melhor.
Que deu errado, todos sabem. Os réus do quebra- -tudo do dia 8 foram condenados a pesadas penas de prisão e multas que inviabilizam economicamente para o resto da vida os três. Se hoje você tivesse que escolher entre um programa de inteligência artificial ou estes advogados para te defender em um processo ainda que no Supremo, quem escolheria? Só uma crença muito forte na humanidade é que faria alguém escolher os doutores da porta do Supremo.