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O público e o privado

A mensagem da Constituição é de que a “coisa pública” tem que ser tratada com respeito, imparcialidade e esmero. Isto é tão importante que essa expressão acabou criando o conceito de República. A palavra tem origem do latim res publica.

O Tribunal de Contas da União (TCU) chega a definir que mesmo se o governante obedecer à legislação e cumprir os trâmites na aplicação dos recursos, se o gasto for considerado anormal, significa crime. A súmula conclui que o gestor não é um gastador de dinheiro público, mas um administrador das necessidades e aplicação dos bens em benefício de todos. Apesar dos conceitos da Carta, da legislação, dos debates e da obviedade, ainda existem os que confundem.

Por aqui chegam evidências de que prefeitos acabam misturando o orçamento do município com a sua carteira e gastam como se fossem donos da cidade. Pode acreditar, alguns nem tem planos de roubo e até usam recursos pessoais para ajudar a cidade. Não pode. Há sempre que separar uma coisa da outra. E é aí que mora a dificuldade.

O mandato de um deputado não é um direito individual dele, como todos pensam aqui. Trata-se de uma procuração para que ele tome decisões e principalmente fale em nome dos seus eleitores, mas o mandato continua público. Na prática não é assim, as excelências se empoderam e se acham donos do cargo, uma espécie de prolongamento do próprio corpo ou de novo, do orçamento pessoal. Este é o grande problema para os ocupantes de cargos públicos em todos os poderes.

No caso do presidente da República a situação fica mais evidente. Há uma confusão natural até de residência. Até hoje não há uma definição cabal se o Palácio da Alvorada é casa do presidente ou se é local público. Isto ficou claro no julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) sobre as lives na casa dele, que na verdade, se trata do Palácio, um prédio público e mantido com dinheiro público. A confusão não é pequena.

O poder muda o ocupante e o molda. Gabriel Garcia Marques, no livro “Cem Anos de Solidão”, fala em vários tipos de solidão. Da beleza, imagina o quanto sofre uma mulher bonita demais tendo que lidar com isso durante a sua vida. Da riqueza, onde tudo passa por dinheiro, mas nada é igual à solidão do poder. O coronel Buendía chegou a fazer um círculo em torno de si para que ninguém se aproximasse dele. Por aqui, este isolamento é o Palácio. Solitário, o presidente se isola e passa a entender como prolongamento dele todo o entorno, inclusive vantagens e pessoas, ou seja, servidores.

Por aqui se conhece a “síndrome da maçaneta”. Sair do poder é enfrentar esta peça terrível. Quando no cargo, sempre um assessor se adianta e abre a porta do gabinete, corre para abrir a porta do carro e assim o escolhido vai vivendo sem encostar a mão nesta utilidade. Quando sai, enfrenta este primeiro choque e depois os outros, como lidar com telefone, marcar passagens e dirigir. A separação nunca é consensual.

A passagem de Jair Bolsonaro e família pelo poder gerou esta pendência. Ficou difícil encarar o término do mandato e veio a depressão. Quem conviveu com Bolsonaro depois da derrota nas urnas eletrônicas relata momentos terríveis. Mas é sempre assim. Por isso mesmo, não é difícil de entender o caso das joias. O presidente do momento se acha tão presidente que tem dificuldade de imaginar que um presente para a instituição não seja para ele. O poderoso se considera a própria instituição. Só que neste caso a realidade é dura e as consequências da apropriação das joias serão severas. O tempo dirá.