A fome voltou a assolar os lares em 2022 e avança cada vez mais rápido pelo país. Segundo um levantamento realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), atualmente, cerca de 33,1 milhões de pessoas não têm o que comer diariamente. Em pouco mais de um ano, 14 milhões de brasileiros entraram para o mapa da fome. Além disso, mais da metade (58,7%) da população convive com a insegurança alimentar. O cenário é equivalente ao patamar da década de 1990.
Os dados são do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil. O primeiro estudo, divulgado em abril do ano passado, estimava em 19 milhões o total de brasileiros que não tinham nada para comer em 2020, cerca de 9 milhões a mais que em 2018, quando essa população somava 10,3 milhões de pessoas.
Ana Maria Segall, médica epidemiologista e pesquisadora da Rede Penssan, reforça que a crise sanitária tornou o quadro desta segunda pesquisa ainda mais perverso. “A pandemia surge neste contexto de aumento da pobreza e da miséria, trazendo ainda mais desamparo e sofrimento. Os caminhos escolhidos para a política econômica e a gestão inconsequente da COVID só poderiam levar ao aumento ainda mais escandaloso da desigualdade social e da fome no nosso país”.
Para Maitê Gauto, gerente de programas da Oxfam Brasil, além dos impactos causados pelo coronavírus, os problemas econômicos e a falta de políticas públicas efetivas de combate à fome levaram a este cenário cruel. “Em 2014, o país saiu do mapa da fome e havia menos de 5% da população nessa condição. Já em 2015, essa porcentagem começou a subir em decorrência da crise econômica. No ano seguinte, a implementação do teto de gastos pelo governo federal impactou diretamente uma série de ações e programas sociais que eram voltados para dar condições dignas de sobrevivência para as pessoas. Tanto que uma pesquisa de 2018 já apontava para 10,3 milhões de cidadãos sem ter o que comer”.
Ainda de acordo com ela, a partir de 2019, tivemos um processo mais intenso de desmonte que teve início com a revogação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). “Isso desestruturou toda a política de transferência de renda, o fortalecimento da agricultura familiar, os investimentos para o pequeno produtor, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). Com a pandemia e a maneira desastrosa com a qual o governo fez a sua gestão, tivemos o aprofundamento da crise econômica que, associada à extinção de programas e a inflação alta, culminou na queda de renda da população e a situação atual da fome”, explica.
Insegurança alimentar
A pesquisa mostrou que 125,2 milhões de brasileiros vivem com algum grau de insegurança alimentar, equivalente a mais da metade (58,7%) da população do país. Na comparação com 2020, houve aumento de 7,2%. Já em relação a 2018, o avanço chega a 60%.
Ainda conforme o levantamento, a fome atinge de forma desigual as regiões do país. No Norte e no Nordeste, os números chegam a 71,6% e 68%, respectivamente, índices maiores do que a média nacional de 58,7%. “Historicamente, são localidades menos favorecidas como mostram alguns indicadores sociais. Elas abrigam os estados mais pobres do país, consequentemente, com baixa capacidade de investimento. Também houve um contingente dessa população que ficou de fora dos programas de transferência de renda, por isso, são os locais mais afetados”, esclarece Maitê.
Cenário agravado
De 2020 a 2022, o salário mínimo não teve aumento real para o bolso do trabalhador. E, para 2023, a situação deve ser a mesma pela quarta vez consecutiva, conforme previsão da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), elaborada pelo governo federal para o próximo ano. Com relação à inflação, medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), o país fechou 2021 a 10,06%, sendo a maior alta desde 2015. Já em 2020, a taxa foi de 4,52%.
A quantidade de desempregados em 2019 era de 11,9%, passando para 13,9% em 2020 e 13,2% em 2021, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Apenas no 1º trimestre de 2022, o índice está em 11,1%. Com esses números, o país deve figurar entre as 10 nações com as maiores taxas de pessoas sem trabalho no mundo.
Segundo Maitê, para mudar essa realidade no Brasil, medidas emergenciais devem ser tomadas. “É necessário um reforço nas políticas de transferência de renda, seja no aumento do valor do auxilio ou na quantidade de famílias beneficiadas. Precisamos garantir a sobrevivência dessas pessoas enquanto não acontece a recuperação econômica. Também é fundamental que o governo federal retome a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Pnsan), incluindo a recriação do Consea, que foi a responsável pelo Brasil sair do mapa da fome em 2014”.
Dentre outras ações, ela afirma ser essencial todo um conjunto de políticas econômicas visando a redução da crise pela qual estamos vivendo. “O primeiro ponto é a retomada da política de valorização do salário mínimo, que ajuda a manter o ganho do trabalhador e o seu poder aquisitivo. O segundo é a questão da geração de emprego e renda, pois é importante que as pessoas tenham autonomia para se manter e não fiquem dependentes apenas dos programas sociais do governo”, conclui.