A desistência da americana Simone Biles de competir a final individual geral da ginástica artística feminina nas Olimpíadas de Tóquio acendeu um alerta importante: a saúde mental dos atletas e como eles lidam com a pressão psicológica e a expectativa por resultados.
Para analisar o caso e falar sobre o assunto, o Edição do Brasil conversou com João Ricardo Cozac, presidente da Associação Paulista da Psicologia do Esporte. Ele é autor de 5 livros acerca do tema e atua há 30 anos como psicólogo esportivo de atletas e equipes de várias modalidades e categorias esportivas.
Como você avalia o ato de Simone?
A decisão dela é um marco para o esporte mundial. Ela traz, por meio de uma experiência própria, muito dura, angustiante e bastante dolorida, o retrato que muitos atletas vivem silenciosamente. Um desequilíbrio das emoções e uma tentativa de adaptação às exigências de um esporte de alto rendimento. O final disso é a síndrome de Burnout, que é a desistência precoce da prática esportiva, seja ela temporária ou até mesmo definitiva. Além de ocasionar quadros agudos de depressão e crises de ansiedade e todas essas respostas emocionais podem estar associadas à dificuldade de adequação a um novo status. Essa adaptação do título de campeã, de ícone mundial, já traz em si um aumento das expectativas externas e, muitas vezes, internas também.
O ato da Simone é um alerta mundial às exigências que o esporte de alto rendimento traz para que a gente possa olhar mais para o lado humano. Antes de um atleta há o ser humano e o atleta que compete, treina e vive o esporte não se separa da sua esfera humana, da sua história, do seu desenvolvimento emocional. Tudo isso entra nas quadras, no ginásio, nas piscinas, nos estádios, etc. É preciso, como já dizia Nelson Rodrigues, na década de 1950, atribuir ao atleta uma alma. E é justamente, por conta dessa alma que as grandes catástrofes acontecem no mundo do esporte e no mundo da vida.
A vida pessoal do atleta influencia na sua carreira?
O peso da fama e das expectativas é quase insuportável para alguns, dependendo da personalidade e das vivências anteriores na infância até a adolescência, bem como tudo isso foi trabalhado ou não internamente. Essas demandas atuais somadas ao recente escândalo de assédio sexual amplamente divulgado envolvendo a ginástica dos Estados Unidos, mais as expectativas do tamanho dos Jogos Olímpicos e todos esperando com que Simone pudesse ser a grande estrela das Olimpíadas de Tóquio, acabou tendo um peso significativo.
Quando Simone diz que ‘há vida para além da ginástica’, o que ela quer dizer é o seguinte: há um ser humano que pratica e que abdica de uma infância, pré-adolescência, adolescência e início da fase adulta em nome do esporte. E, em alguns momentos, faz falta essas vivências não vividas para que o desenvolvimento emocional possa ocorrer de uma forma natural e saudável.
O que o caso de Simone significa para o esporte?
Ele é um grande sinal de alerta para as comunidades esportivas, no qual se revela um caráter pouco saudável na prática do alto rendimento esportivo. No caso da ginástica, mais especificamente, por conta de um início extremamente jovem, ou seja, são crianças que param de brincar precocemente, muitas vezes deixam de frequentar a escola para poder ir a ginásios treinarem com o sonho de virarem ginastas olímpicos.
Qual a importância do treinamento psicológico?
Ele é a base da pirâmide do treinamento esportivo. Um lado desse triângulo é a preparação física, o outro é a tática e técnica e a base é o preparo psicológico. Não se pode criar atletas com corpos e técnicas de aço e a base de barro. A capacitação de um esportista para os grandes desafios que o alto rendimento impõe necessita de um trabalho, preferencialmente desde o início da sua carreira e da sua vida, para que ele possa ter uma estrutura e uma base mais sólida para encarar as cobranças, as expectativas e as pressões geradas.
O que ocorre é que boa parte dos atletas de diversas modalidades e com o foco na ginástica, principalmente, logo na primeira infância, já abandonam aspectos que são fundamentais para o crescimento, criação da autoimagem, do autoconceito, da identidade, assim como também da relação com o mundo e com as pessoas que estão à sua volta. De maneira muito precoce, o mundo dessas crianças se torna apenas o ginásio, apenas a professora e a treinadora. E não se tem mais nenhum horizonte de expansão social, emocional e psicológica.
Atletas também têm dificuldade em lidar com o sucesso?
A psicologia do esporte surge sempre quando os atletas encontram fragilidades e se perdem no meio de sua trajetória. Por outro lado, precisamos lembrar da importância disso quando eles se tornam vitoriosos e têm êxito em suas carreiras. Muitas vezes, o peso da vitória acaba sendo insustentável. Existem esportistas que acabam conseguindo conviver de uma forma menos sofrida com a derrota do que sustentando o status de vencedor.
Falar mais sobre o tema pode ajudar a lidar com a pressão?
Esse ato da Simone Biles em revelar o seu estado interno é sim um fortalecimento para que os demais atletas também possam reivindicar uma qualidade melhor desde o início das suas carreiras. A atitude da ginasta precisa ser valorizada, reconhecida e respeitada. Não é mais um sinal amarelo, é um sinal vermelho diante da exigência de se trabalhar os aspectos emocionais dos esportistas. O esporte de alto rendimento está longe de ser um lugar saudável.