Apesar de estar garantido constitucionalmente, a demarcação das terras indígenas, a fiscalização desses territórios e sua proteção nunca foram prioridades para os governos brasileiros. É o que mostra o relatório “Violência contra os Povos Indígenas do Brasil – Dados 2018”, produzido pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
Para entender melhor esses dados e quais são as perspectivas para o futuro, o Edição do Brasil conversou com Roberto Antônio Liebgott. Ele é o coordenador do Cimi, regional sul, e membro da comissão que organizou o estudo.
Quais são as principais conclusões do relatório?
Identificamos que os povos indígenas enfrentam um agravamento dos ataques a suas vidas e seus territórios no Brasil. Além da paralisação total das demarcações de terras, houve um substancial aumento das invasões aos territórios já demarcados. Fora o crescimento dos casos de roubo de madeira, garimpo e da exploração criminosa dos recursos naturais, agora, temos também a elevação de ocorrências de grilagem e de implantação de loteamentos em terras indígenas.
Essa é a situação mais grave e dramática, porque evidencia o avanço dos poderes econômicos, em especial, do agronegócio e da mineração, mesmo sobre áreas que deveriam estar constitucionalmente protegidas. É algo que faz saltar aos olhos a falta de fiscalização e as consequências do discurso de ódio contra esses povos, que ganha cada vez mais espaço, vocalizado, inclusive, pelo presidente da República.
Sobre o aumento da violência, quais dados corroboram essa afirmação?
Ocorreu um crescimento considerável de alguns tipos de violência contra os povos indígenas em 2018. Houve um aumento de 22,72% no número de assassinatos registrados em 2018, de 110 para 135 mortes, com destaque para os estados de Roraima, onde houve 62 óbitos, e Mato Grosso do Sul, com 38 registros.
Além disso, os casos de invasão às terras indígenas também subiram, especialmente as já demarcadas. No ano passado, foram registrados 110 casos, número maior que o registrado em 2017 e que foi maior também que o de 2016. Conforme dados preliminares, a situação em 2019 é ainda pior: nos 9 primeiros meses do governo Bolsonaro, foram registrados 160 casos de invasão a 153 terras indígenas – mais que o dobro do número de terras afetadas em 2018. É uma situação gravíssima.
O que esperar para os próximos anos em relação aos povos indígenas?
Do ponto de vista institucional, quase nada de positivo. O contexto político e econômico sinaliza que o Estado se colocou a serviço da depredação, devastação, exploração e integração dos povos, denominada de “comunhão nacional”. Por outro lado, há iniciativas que seguem na luta pelo direito a diferença, demarcação das terras indígenas e políticas públicas que assegurem assistência específica e diferenciada.
Há também a mobilização contrária as ações fundamentalistas e integracionistas a partir da união de setores da sociedade, inclusive de partidos políticos e do próprio Judiciário, que lutam e reivindicam a demarcação dos territórios, fiscalização, proteção e o combate às práticas de governo de promover a inconstitucionalidade dos direitos indígenas. Acreditamos que as forças democráticas superarão esse período sombrio do país, no qual Bolsonaro, com suas mentiras e imbecilidades, será expurgado.
Como os invasores de terras indígenas estão agindo atualmente?
As invasões nunca cessaram, mas havia uma metodologia diferente, como a exploração da madeira, minério e eram voltadas ao roubo de recursos naturais. Agora, a invasão não ocorre apenas para a retirada dos recursos, mas também para o estabelecimento dos invasores dentro de terras já demarcadas. Ou seja, o madeireiro entra, limpa a terra e ela passa a ser destinada à especulação imobiliária. Em Rondônia, isso ocorreu em vários lugares. É a prática do fato consumado: entram, tiram tudo que o local pode oferecer e colocam um grileiro, que vai lutar para que essa terra se torne legalizada mais adiante.
Por um lado, há um discurso crescente, da parte dos governantes, de que as terras indígenas precisam ser exploradas, por outro, há um enfraquecimento das fiscalizações. Na prática, acabam autorizando que grileiros, garimpeiros e especuladores adentrem os territórios sem qualquer controle do Estado. Os dados mostram que essa perspectiva vem se intensificando de 2018 para cá. E, concomitante a ela, vem a política, igualmente nefasta, da integração, justificada pelo discurso oficial de um suposto desenvolvimento econômico.
Quais povos têm sofrido mais com os ataques?
Em relação às invasões dos territórios, os povos Karipuna e Uru-Eu-Wau-Wau, ambos de Rondônia, estão entre os mais afetados, com ação de madeireiros e venda de lotes no interior de seus territórios. Também vêm sendo duramente afetados os Munduruku, na região do rio Tapajós; e os Yanomami, em Roraima, em função da crescente invasão de seus territórios por garimpeiros, que promovem a destruição de igarapés e poluem rios inteiros com mercúrio, utilizado na extração do ouro.
Além desses casos, que se agravaram neste último período, a situação de violência contra os povos que ainda estão em luta pela demarcação dos seus territórios continua. É o caso dos Kaiowá e Guarani, no Mato Grosso do Sul; Kaingang e Guarani, na região Sul, e por diversos outros povos nas regiões Nordeste e Norte.
As falas do atual presidente favoreceram esses ataques?
Com falas preconceituosas, Bolsonaro recorre a estereótipos sobre os povos indígenas, reiterando uma visão arcaica de que seus territórios são grandes áreas “vazias” que deveriam ser “desenvolvidas”. O discurso dele prega que os indígenas não precisam da terra e ignora as particularidades sociais e culturais dos povos originários, além de servir ao objetivo de permitir que esses locais, que são patrimônio da União, sejam apropriados por grupos privados.
Suas falas agressivas, como a comparação de terras indígenas a “zoológicos” e os ataques aos órgãos de fiscalização ambiental e até a instituições de monitoramento, como o Ibama e o Inpe, acabam por fortalecer a percepção dos invasores de que podem agir impunemente. É uma mistura perigosa entre um discurso odioso e uma política de desmonte dos mecanismos de proteção e fiscalização.
Como o Cimi e outras instituições ligadas aos direitos humanos têm atuado para defender esses povos?
O Cimi acredita na autonomia e protagonismo dos povos indígenas e nas suas variadas formas de lutas e mobilização política e espiritual. Nos somamos nas lutas pela garantia dos direitos, expressos nos artigos 231 e 232 da Constituição Federal. Há um intenso movimento indígena e indigenista no país para se contrapor ao fundamentalismo, inconstitucionalismo e integracionismo dos povos à sociedade brasileira. Acredita-se, e são muitos aqueles que pensam nessa perspectiva, que deve haver respeito ao pluralismo étnico, jurídico, social, econômico, de credos, gênero e político nas relações entre as pessoas e povos. A partir dessas perspectivas, sabemos que as forças democráticas e jurídicas se alinharão ao debate e na defesa dos direitos dos povos, não dentro um debate setorizado, mas como objetivos ou horizontes de vida e de mundo, a partir das lógicas das diferenças étnicas e culturais e do bem viver.