A Copa do Mundo no Catar, primeiro país do Oriente Médio a sediar o evento, terá início no dia 20 de novembro. A escolha da nação para promover o mundial, desde o princípio, tem sido alvo de polêmicas. Houve denúncias de corrupção na candidatura, depois veio a público as péssimas condições dos trabalhadores que construíram os estádios e ainda tem a questão de costumes bastante tradicionais, por exemplo, no país islâmico, a homossexualidade é considerada crime previsto por lei.
Para falar mais sobre esse assunto, o Edição conversou com Renato Saldanha (foto), doutorando em Estudos do Lazer da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que tem como foco o estudo do futebol e das torcidas.
Por que definiram o Catar para ser o primeiro país do Oriente Médio a sediar uma Copa do Mundo?
A Federação Internacional de Futebol (Fifa), desde os anos 1990, já vem adotando essa política de buscar, com os seus eventos, ampliar o horizonte comercial da instituição. As Copas nos Estados Unidos, Japão, Coreia do Sul e África do Sul foram realizadas com essa ideia de ampliar o mercado do futebol e, também, do capital político da Fifa. Com isso, ela vai negociando apoios nesses lugares. Por outro lado, o Catar também tem seus interesses, porque o país busca melhorar a imagem perante o mundo. Isso acaba sendo uma moeda nas relações internacionais para as autoridades catarenses. É um jogo de duplo interesse, tanto da Fifa, quanto do Catar.
Em sua opinião, por que o Catar ainda é uma nação tão conservadora?
O que me parece bem evidente é que a principal riqueza da região é concentrada na mão de poucas pessoas/famílias e o interesse delas é manter tudo como está. Desse modo, a religião, como um código de conduta, é uma forma de controlar qualquer tipo de questionamento, seja nas relações de propriedade, de mando ou poder. A sociedade não vai permitir hábitos diferentes, porque isso poderia ser a porta de entrada para outras questões, que não interessam a quem comanda a região.
Como um país com leis tão rígidas foi escolhido para ser sede de um evento tão diverso?
A Fifa lida bem com ditaduras e autoritarismo, porque isso é importante para ela no que se refere ao controle do mercado. O principal ativo da instituição é a Copa do Mundo, então ter esse evento num lugar que ela sabe que pouco será questionado é interessante. Na África do Sul, em 2010, e na Alemanha, em 2006, tivemos eventos que foram extremamente contestados pela população local, inclusive com protestos. As duas últimas sedes foram decididas logo após a Copa no Brasil, em 2014. A Fifa ficou meio ressabiada e fez essa opção de escolher a Rússia, em 2018 e, agora, o Catar, em 2022, onde ela sabia que teria menos possibilidade de sofrer objeções, pois os instrumentos democráticos de questionamento não funcionam. A autocracia é amiga dos negócios da Fifa de longa data.
Os capitães da Inglaterra, França, Alemanha, já disseram que vão usar braçadeiras com as cores do arco-íris e a mensagem “One Love”, da campanha de antidiscriminação. Como isso pode reverberar culturalmente no país?
É uma incógnita, mas imagino que o país vai se abrir de uma forma ou de outra. Como eu disse, trata-se de um evento dominado pelo mercado e que abraça o autoritarismo, mas, ao mesmo tempo, precisa garantir liberdade e espaço. Acredito que isso pode ser usado por grupos organizados e pela população local para conseguir criar rachaduras naquela sociedade.
O Catar se planejou estruturalmente, mas social e moralmente houve algum preparo?
Geralmente, o que a gente tem visto em outros eventos e em outras Copas, inclusive no Brasil, Alemanha e África do Sul é que o país se transforma em um estado de exceção, no sentido de que as próprias regras locais, muitas vezes, são suspensas e o comando de grande parte dos eventos passa pela mão da Fifa. Acredito que vai haver um acordo para que tudo transcorra bem, não espero grandes problemas para os turistas, mesmo aqueles que passem do ponto. Creio que as autoridades catarenses serão hábeis o bastante para fazer vista grossa nesse momento em que está todo mundo olhando para eles.
O embaixador da Copa no Catar, Khalid Salman, disse que a homossexualidade é um “dano mental”. Existe a possibilidade da comunidade LGBTQIA+ sofrer qualquer tipo de violência no país?
Difícil prever, na verdade, acho que, por pressão da Fifa, ocorra um relaxamento de regras e códigos de conduta, embora tenha havido essa fala do embaixador. Não acredito que as normas vão ser as de sempre. Mas é possível que tenhamos alguns casos de constrangimento e de violência, porém, haverá um esforço para não provocar grandes prejuízos a imagem, porque é uma questão de capital econômico. O Catar investe muito em turismo e esse é o momento onde o mundo inteiro está com os olhos no país. Ou seja, eles vão fazer de tudo para contornar qualquer problema.
O histórico de direitos humanos do país levou a muitos pedidos para que as equipes e autoridades boicotassem a Copa. Você acha que isso pode acontecer?
Esses boicotes foram muito comuns em Olimpíadas e Jogos Olímpicos, principalmente, nos anos 1970 e 1980, mas acho difícil que hoje em dia tenham êxito, até porque são muitos interesses econômicos envolvidos. O próprio jogador, por exemplo, é muito difícil para ele recusar servir a seleção nacional em uma Copa do Mundo, porque tem contrato e a questão econômica, o que dirá uma federação. Acredito que teremos, no máximo, uma faixa de capitão, uma mensagem na camiseta, etc, mas um boicote efetivo não.