Após 38 anos em vigor no Brasil, a Lei de Segurança Nacional (LSN) voltou ao centro do debate no país. Isso porque o youtuber e empresário Felipe Neto tornou pública a intimação que recebeu para responder por crime contra a segurança nacional. Em vídeo, Neto chama o presidente da República, Jair Bolsonaro, de genocida devido à sua gestão na pandemia da COVID-19. A repercussão do caso levantou diversas discussões sobre a liberdade de expressão. O Edição do Brasil conversou com o advogado e especialista em Processo Civil, Francisco Gomes Júnior, sobre o histórico da LSN e sua incompatibilidade com a atualidade.
O que é a Lei de Segurança Nacional (LSN)?
A LSN foi instituída em 1983, editada durante o governo João Figueiredo, último presidente do período militar no Brasil, baseada na doutrina de segurança nacional para a preservação da ordem política e social, tornando crimes determinadas condutas que possam ferir a soberania.
Na ocasião de sua criação, qual era o objetivo de João Figueiredo?
A lei objetivava preservar a ordem pública, coibindo os atos “subversivos” ou “terroristas” que atentassem contra o Estado, basicamente reprimindo manifestações contra o governo, já que a classificação do termo “subversivo” tinha um caráter subjetivo a depender de quem o interpretasse. Desde que uma ação fosse classificada como passível de causar dano ou lesões à integridade territorial e soberania nacional, ao regime adotado no país, à Federação, ao Estado de Direito e aos chefes dos Poderes da União.
Por ser criada na ditadura, a LSN é alvo de muitas críticas. Na sua análise, é necessária uma mudança na redação da lei?
Com a redemocratização do país a LSN caiu em desuso, voltando ao debate no governo atual, onde condutas de grupos radicais passaram a ser enquadradas na lei. Como ela é de 1983, há um debate jurídico sobre se a Constituição Federal, que é posterior de 1988, recepcionou ou não tal legislação. Em outras palavras, há a necessidade de que o Supremo Tribunal Federal (STF) decida se a LSN é compatível ou não com a Constituição Federal atual. Tal apreciação irá ocorrer em breve, podendo haver a declaração total ou parcial de inconstitucionalidade do texto.
O caso do youtuber Felipe Neto se enquadra na LSN?
Não. Ele fez um mero comentário, uma exposição de uma opinião, que tem amparo na Constituição Federal, ou seja, utilizou-se da liberdade de expressão. Não pretendeu atentar contra a soberania nacional ou o Estado de Direito, mas tão somente manifestou- -se criticamente ao presidente da República. Para casos assim, aquele que se sentir ofendido pode buscar judicialmente indenização pela reparação dos danos.
É possível dizer quais devem ser os próximos passos do caso?
O inquérito policial de Felipe Neto foi encerrado por ordem judicial, já que não se trata de nenhuma das hipóteses de crimes previstos na LSN. Se o ofendido entender que sofreu prejuízo material ou moral pode, como dito, buscar a reparação cível judicialmente. Não há nenhum cabimento em tentar- -se enquadrar opiniões e manifestações da livre expressão em crimes contra a segurança nacional. A Constituição Federal garante a todos os cidadãos a livre manifestação do pensamento.
Quais são as principais diferenças do caso de Felipe Neto e do deputado Daniel Silveira (PSL), também enquadrado na LSN?
Existem diferenças significativas entre os dois casos. Enquanto Felipe Neto expressou uma opinião e fez uma crítica, ainda que contundente, ao presidente usando o termo “genocida”, ele apenas manifestou sua opinião, sem ameaçar nenhuma pessoa ou entidade. No caso Daniel Silveira, houve reiteradas manifestações que incitaram a violência e atacaram as instituições, pregando-se a invasão do STF e dar uma “lição” nos ministros, enfim, atitudes que atentam contra o Estado de Direito. Ele poderia fazer as críticas que quisesse desde que não incitasse a violência e atentasse contra às instituições e ao regime democrático.
Em quais casos, após a redemocratização, a LSN foi usada de forma devida?
A LSN estava em desuso, bem esquecida até que, recentemente, passou a ser utilizada justamente por conta de ataques às instituições e ameaças a autoridades públicas. Em alguns casos, foi utilizada contra invasões em prédios públicos promovidas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) com a prisão de diversos de seus membros. Em tese, até que o STF aprecie a matéria e decida sobre a revogação total ou parcial da lei, ela está em vigor e pode ser usada nos episódios já mencionados, como afronta ao Estado democrático, à soberania nacional e ao federalismo. Cada juiz e tribunal decide no caso concreto sobre sua aplicação.
Quais são os perigos para a democracia se a LSN virar um frequente meio de opressão aos opositores do governo?
A lei mostra-se incompatível em muitos pontos com a nossa Constituição, que estabelece liberdades e garantias individuais de todo cidadão. É um entulho do período autoritário, em minha opinião conflitante com nossa Constituição Cidadã. O STF pode revogar a LSN total ou parcialmente para evitar arroubos incabíveis de buscar o enquadramento de qualquer conduta como sendo lesiva à segurança nacional. Entendo que deve- -se pensar em uma nova legislação ou mesmo em manter-se em vigor parte da lei, separando-se o joio do trigo, evidenciando que a liberdade de expressão não pode valer-se de anonimato e ainda que situações de ameaças a autoridades e instituições, bem como ao Estado democrático de Direito não podem sair impunes.