Um desfile realizado em Cuiabá, no Mato Grosso, gerou polêmica no país. Na plateia estavam presentes cerca de 200 pessoas que tinham interesse em adotar crianças. Os modelos eram 18 adolescentes acima de 12 anos que estão na fila de adoção. O evento causou revolta em parte da população e trouxe à tona outro tema ainda sem solução no país: a realidade da adoção tardia.
Segundo o Cadastro Nacional de Adoção, do Conselho Nacional de Justiça, até janeiro deste ano, existiam cerca de 9.393 crianças disponíveis para serem adotadas. Dessas, 7.212 têm mais de 5 anos, o que equivale a 76% dos meninos e meninas que aguardam uma vaga para reconstruir suas vidas e que são considerados, para muitos adotantes, velhos demais.
Ainda segundo o Cadastro Nacional de Adoção, 130 crianças que foram adotadas entre 2008 e 2015, último período avaliado, foram devolvidas aos abrigos. O Edição do Brasil conversou com a diretora nacional da Associação Brasileira de Psicopedagogia, Ângela Mathylde. Ela disse que quando uma criança é adotada, entende que aquela família está fazendo um favor. “Essa criança acredita que precisa ser perfeita para continuar recebendo favores e que se não cumprir o protocolo da perfeição, será devolvida”.
Como a dificuldade em ser adotada pode ser trabalhada nas crianças mais velhas?
Essa questão deve ser observada terapeuticamente com cada criança. Nos abrigos ela precisa ter, sistematicamente, um acompanhamento. Além disso, é preciso uma avaliação para conhecer o passado de cada uma e ter um diagnóstico de possíveis traumas, visto que muitas são abandonadas e negligenciadas. Deve-se investir no cunho emocional delas para que, se ela não for adotada, esteja ao menos preparada para ser um adulto organizado emocionalmente.
Como uma criança pode ser afetada quando é devolvida após uma adoção?
Esse é um trauma bem pior. Quando a criança é adotada, ela entende que aquela família está fazendo um favor e que precisa ser perfeita para continuar recebendo favores. Se não cumprir o protocolo da perfeição, será devolvida. Imagina o que isso faz com a cabeça dela? Ela vai achar que não foi suficientemente boa para estar naquele lar e merecer o afeto daquela família.
O que os adultos devem refletir antes de adotar uma criança?
O primeiro é se tem estrutura para isso. Se tem condições de dar uma boa base a essa criança que vai chegar. Outra coisa é entender que ela não tem a função de suprir nenhum buraco psíquico dos adultos. E, refletir que aquela criança está sendo preparada para ser recebida, mas não devolvida. Se as pessoas não a quiserem mais, causa um estrago muito grande. Por isso, os pais devem passar por um processo extenso de avaliação psicológico de pelo menos 1 ano.
Por que o tema adoção é pouco repercutido no Brasil?
Falta muitas coisas no Brasil. Mas o que mais observo é que existe uma romantização de problemas que precisam ser resolvidos. Quando a pessoa romantiza tudo, ela vive em um delírio. E, com isso, cria-se uma cultura de postergar e nunca executar. A pessoa pode adotar uma criança da sua casa, por exemplo, apadrinhando, passando um dia com ela, patrocinando um curso, etc. Dá pra ser um amigo próximo, deixando claro que você não é pai ou mãe, mas pode ser um apoio quando ela precisar. O importante é ajudar de alguma forma e ser efetivo nas atribuições reais.
Por que o desfile “Adoção na Passarela” causou tanta revolta?
Existem várias formas de olhar essa questão. A primeira é qual o propósito desse desfile? É importante mostrar que essas crianças precisam de um lar, mas de uma forma carinhosa. Para que a exposição? Elas são produtos a serem oferecidos? Para que uma criança participe de uma manifestação dessas é preciso compreender sua história e, em nenhum momento, a instituição disse ter feito isso. Além do mais, nenhuma criança foi adotada.
Em nota, os responsáveis pelo evento disseram que: “Nunca foi o objetivo do evento – parte integrante de uma série de outros que compõem a “Semana da Adoção” – apresentar as crianças e adolescentes a famílias para a concretização da adoção”. E ainda que “a ideia da ação visa promover a convivência social e mostrar a diversidade da construção familiar por meio da adoção”. Na nota, eles ainda afirmam que “nenhuma criança ou adolescente foi obrigado a participar do evento e todos eles expressaram aos organizadores alegria com a possibilidade de participarem de um momento como esse. A ação deu a eles a oportunidade de, em um mundo que os trata como se invisíveis fossem, poderem integrar uma convivência social”. Por fim, ressaltaram que “a OAB-MT e a Ampara repudiam qualquer tipo de distorção do evento associando-o a períodos sombrios de nossa história e reitera que em nenhum momento houve a exposição de crianças e adolescentes”.