Pela primeira vez em mais de seis décadas de história, o tradicional bloco “Domésticas de Luxo” deixará de usar os acessórios que fazem alusão aos negros. A decisão foi oficializada em uma reunião no dia 18 de fevereiro entre a Comissão de Igualdade Racial da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), organizadores do grupo carnavalesco e representantes da Fundação Cultural Alfredo Ferreira Lage (Funalfa). A medida foi tomada com o objetivo de tentar combater o racismo estrutural.
A partir de agora, o bloco não vai mais fornecer itens como luvas, malha e tinta preta para caracterização de seus foliões. Cada integrante assinou um documento garantindo que não recebeu nenhum desses acessórios e está ciente que seu uso é considerado crime de racismo e sujeito as penalidades legais. Além disso, um termo de compromisso também foi assinado pela direção do “Domésticas de Luxo”, pela Comissão da OAB e pela Funalfa.
De acordo com o presidente do bloco Valdir Alves, a direção procurou a OAB para formular as alterações. “Se todo mundo muda, porque a gente não pode mudar? A gente também pretende ter mais precaução nas composições dos sambas-enredo do bloco para não usar nenhum termo possivelmente racista. Entendemos todos os esclarecimentos e considero uma evolução importante. Acredito que estamos fazendo o melhor para o Carnaval de Juiz de Fora”.
Carlos Eduardo Furtado de Paula, um dos diretores do grupo carnavalesco, reitera que o intuito do bloco nunca foi ser racista. “O ‘Domésticas de Luxo’ sempre foi muito colorido. Nós sempre queremos levar alegria para o povo e fazer com que os foliões se sintam bem ao pular Carnaval com familiares e amigos. É importante saber que existem pessoas que não concordam com essa atitude e podem parecer caracterizados com os itens banidos. É preciso dialogar, mas teremos cautela”.
O presidente da Comissão para Promoção da Igualdade Racial da OAB, Alexander Jorge Pires, destaca a postura do bloco em mudar sua tradição. “A grande questão é que pintar o rosto de preto, vestir essa malha preta e o fato de as domésticas serem apenas mulheres negras estigmatiza-se o coletivo. Isso traz reflexos negativos, afinal doméstica é de qualquer cor. Na reunião, nós esclarecemos o que é racismo, preconceito e discriminação. As informações foram importantes para que a diretoria do bloco tivesse uma consciência sobre essa questão e chegasse a um resultado positivo”.
Para o superintendente da Funalfa Zezinho Mancini, a decisão traz ganhos para a cultura e sociedade. “O embate, que vinha acontecendo nos últimos anos entre quem defendia a tradição e quem defendia o respeito, felizmente trouxe uma vitória de ambas as partes. A decisão mantém o bloco e eu tenho certeza que ele tem plena capacidade de se reinventar e preservar todas as suas características como a irreverência, alegria e toda a festa para o Carnaval de Juiz de Fora. Toda a história do ‘Domésticas de Luxo’ não será apagada em função disso”, afirma.
Polêmica nos anos anteriores
O bloco já vinha sofrendo críticas e protestos devido ao seu viés considerado racista. As primeiras reclamações surgiram em 2015 pelas redes sociais. No ano passado, um grupo de jovens realizou um protesto e levantaram cartazes em que destacavam frases como “Preto, vá a blocos que você não é a piada!” e “Eu não sou sua fantasia”. Recentemente, o DCE da UFJF repudiou as “práticas que discriminam gênero, raça e, sobretudo, trabalhadoras no bloco”.
De acordo com a diretoria do DCE, “a prática do bloco não fere apenas uma raça, a negra, fere também um gênero, as mulheres, e uma classe social, as trabalhadoras. O ‘Domésticas de Luxo’ desfila somente com participantes homens com rostos pintados de preto, batom excessivamente vermelho e extrapolando os limites da boca para dar uma ideia de lábios grossos, enchimento nas nádegas e roupas de empregadas domésticas. O estereótipo mais raso e ridicularizado da mulher negra trabalhadora”.
Sobre as mudanças no bloco, o DCE considera a medida como um “importante” e “necessário” passo dado pela organização, mas ainda não é suficiente. “Há 60 anos desfilam com esse costume de homens brancos se ‘fantasiarem’ de mulheres negras e não são apenas os participantes e organizadores, mas também os foliões. Então, acreditamos que se essa medida foi tomada a partir da autocrítica e do reconhecimento do viés racista do bloco, cabe à organização também orientar os foliões que essa prática não é mais uma característica do bloco”.
Ainda segundo o DCE, a adequação demorou para acontecer, pois mudar costumes e tradições leva tempo. “É um processo pedagógico que não vamos ganhar no grito, mas sim convencendo e explicando para as pessoas porque se deve romper com esse nosso histórico racista. Fizemos a pressão popular necessária, mas é certo que faltou medidas institucionais do poder público que poderiam há algum tempo interromper essa prática”, conclui.
BOXX