“A gente é engolida, não aceita”. A frase dita por Amanda Rodrigues, 36, transexual, resume a vida de quem tem que lutar por trabalho, políticas de saúde, contra a violência e, inclusive, pelo reconhecimento da própria existência. No esporte não é diferente, a recepcionista e caixa de um café em BH, joga vôlei desde os 10 anos, mas só começou a levá-lo a sério aos 16 anos. “Se pudesse viver de vôlei, viveria. Tenho prazer em acordar cedo para praticar. Quando era novinha ia para Ribeirão das Neves a pé para jogar num projeto social porque não tinha dinheiro nem para passagem”.
Treinando há 20 anos, Amanda já passou por times de várzea e de projetos sociais com os quais participou de diversos campeonatos desde os 15 anos. A mesma idade com que ela iniciou seu processo de transição de gênero (quando a pessoa não se identifica com o sexo de nascimento). “Muitas portas se fecharam. Você está tentando ser quem você é e descobrindo um corpo que não é seu, mas muitas pessoas não me queriam em um time porque não entendiam o que era ser trans”, lembra.
Na experiência dela, 30 anos atrás a situação era pior. “Como eram anos 90, não havia tanta informação. Minha família só me entendeu depois que passei por uma transfobia no colégio por parte de diretores. Hoje, eles são essenciais. Meu alicerce”.
A instrutora e jogadora profissional de poker Nicole Rose, 33, não teve o mesmo apoio. “Aos 5 anos já jogava futebol, com 7 entrei no time do meu bairro”. Quem lhe apresentou a bola foi o pai, mas talvez nem ele soubesse que o relacionamento duraria tanto. “Desenvolvi um amor pelo futebol”, simplifica. Ela chegou ao nível profissional.
Aos 17, tentou iniciar a hormonização. “Tomava um pouco e parava. Sempre que meu peito começava a crescer, parava porque ainda jogava em times masculinos”. A aptidão para o esporte foi além do amadorismo. “Cheguei a jogar uma Copa Itatiaia. Joguei num time de categoria de base e depois disso me profissionalizei por um clube de Santa Luzia e disputei o Campeonato Mineiro”.
Com 3 meses de contrato, Nicole rompeu o ligamento do joelho. Para ela, o momento foi um sinal de uma outra ruptura que havia sido adiada tempo demais. “Não quis voltar porque não estava aguentando. Precisava me assumir. Sei que poderia ter seguido por mais um tempo e sei que seria infeliz porque teria que manter um corpo masculino e conviver com um meio extremamente homofóbico e machista”.
Aos 22, começou uma dieta hormonal definitiva. “Foi um momento solitário. Era só eu, não tive suporte de família e meus amigos desapareceram”. Após o processo de transição, o amor pelo futebol continuou, mas por falta de lugar para jogar, Nicole começou a praticar tênis. “Fiquei 7 anos sem chutar uma bola”, comenta. Demorou, mas o encontro entre Nicole e a bola voltou a acontecer. Dessa vez, em um campo que não lembra em nada o ambiente opressor de antes. “Hoje, no time do Bharbixas, nunca sofri preconceito. Sempre fui bem aceita e respeitada”.
Saúde na transição
Segundo o educador físico e nutricionista Flávio Holman, que também é trans, o principal benefício da prática de esporte durante a transição é a saúde mental. “Em todos os casos, modificações geram estresse. O corpo está mudando e a cabeça precisa aceitar os efeitos, como inchaço e nascimento de pelos. Além disso, também ajuda na autoestima”.
É direito
Gustavo Souza, advogado e presidente do Instituto Mineiro de Gestão, Marketing e Direito Desportivo (IMDD), órgão que promoveu, em parceria com o América Mineiro, a primeira mesa de debate sobre ‘Transexualidade no Esporte’, esclarece que no Brasil, a Lei Pelé rege os princípios gerais do esporte. “Os artigos 1º e 2º da lei garantem a autonomia das entidades esportivas. As federações e confederações são independentes para estabelecer a organização de sua modalidade, inclusive, da inserção de transexuais”.
Segundo o advogado, caso um transexual pretenda ingressar em uma prática esportiva de um time profissional, o primeiro passo é procurar a federação ou confederação para que conheça as normativas de inserção e o nível mínimo de testosterona que o atleta pode ter no organismo.
Devido a novidade da questão, não há um consenso sobre vantagens ou não dos atletas transexuais sobre os cisgêneros.
Dia da Visibilidade Trans
Para evidenciar as particularidades dessa população, o dia 29 de janeiro foi consagrado como Dia da Visibilidade Trans – população que engloba travestis, bem como homens e mulheres trans. A data marca uma das primeiras iniciativas públicas contra a transfobia, a campanha Travesti e Respeito: já está na hora dos dois serem vistos juntos, lançada em 2004 pelo Ministério da Saúde.