Pedidos de renúncia, impeachment e declarações de repúdio até mesmo dos membros de seu partido, o Republicano, marcaram os últimos dias da gestão do ex-presidente Donald Trump nos EUA. Esses são alguns dos desdobramentos após a invasão ao Congresso Americano por apoiadores do republicano, que terminou provocando a morte de cinco pessoas. O presidente é acusado de incitar o protesto. O Edição do Brasil conversou com Jussaty Cordeiro Jr., historiador e especialista em culturas políticas, sobre as estratégias de Trump ao tumultuar a transição do governo para o presidente eleito, Joe Biden, e os possíveis reflexos dessas ações para o Brasil.
Trump negou os resultados das eleições, inflou seus apoiadores e, no último minuto, tentou se distanciar da invasão ao Congresso. Qual era a real estratégia do presidente americano?
A estratégia dele se mostrou perigosa logo no momento em que ocorreu a invasão. Ao que parece, ele tinha uma perspectiva do que poderia acontecer e jogou com os fatos e as reações da opinião pública. O autor do livro “Como as democracias morrem”, Stephen Levitsky, chegou a dizer que Trump não teve êxito porque as Forças Armadas não o apoiaram.
Notícias mais recentes revelam que o FBI investiga alguns policiais que, aparentam ter facilitado a invasão e foram simpáticos ao movimento. O que fica claro dessa estratégia é que Trump sabe usar as redes sociais e tem influência sobre um grupo de americanos que não está satisfeito com a política e seu sistema. O fenômeno tem se espalhado no mundo todo, inclusive no Brasil. Diferente de Levitsky, não acredito que a falta de apoio das Forças Armadas tenha importância que legitimaria o movimento, tampouco que essa ajuda configurasse um golpe militar aos moldes latino-americanos. A estratégia é uma demonstração de força de Trump, Biden terá muita dificuldade em governar o país com os grupos extremistas que estão ativos por lá, além do fato de que outros, não necessariamente os extremistas, também apoiam Trump. A divisão da sociedade americana é muito grande.
Outro fator que torna o evento curioso é o fato de que, historicamente e conceitualmente, os movimentos revolucionários surgem de “fora” do poder, de grupos à margem da sociedade e do processo político e que, portanto, almejam alguma forma de participação ou de transformação da política. O que Trump fez foi um “autogolpe”: dentro do poder, o chefe do Executivo invade o próprio espaço de poder. Isso é surreal e perigoso.
Entre cartazes, pessoas fantasiadas e até bandeira racista: é possível dizer quais eram as demandas dos invasores do Capitólio?
Primeiro é preciso mencionar o fato de que os manifestantes representam, em certa medida, uma amostra do cidadão “médio” americano: republicano radical, tradicionalista, cristão e favorável ao porte de armas. O grupo “tribalismo masculino” é um dos mais curiosos. Eles estavam vestindo pele de um bisão com chifres, eram tatuados, tinham os rostos pintados com as cores da bandeira dos EUA e as pernas cobertas por tecido na cor da pele. Esse grupo possui uma pauta e objetivos estranhos e contraditórios, passando pela violência e ataque à LGBT’s, às mulheres e às minorias. Os QAnon acreditam que vários políticos e celebridades americanas escondem e defendem pedófilos, acusando inclusive políticos democratas. O principal representante do movimento, Jackie Angeli, afirma que o Trump está travando uma guerra contra os pedófilos. Enfim, usando, sobretudo, a deep web, esses grupos parecem ter saído de um roteiro de Stanley Kubrick, como em Laranja Mecânica, é surreal, distópico e quase inacreditável. É difícil entender que tenhamos grupos e pessoas que difundem esses valores e ideias.
Por que devemos ficar de olho nos acontecimentos políticos dos EUA?
Desde a doutrina Monroe e da política do Big Stick de Roosevelt, na metade do século XIX e início do século XX, os destinos da América Latina são influenciados pelo que ocorre nos EUA. Podemos citar alguns exemplos de ingerência americana na política dos países latino-americanos como o apoio e difusão das ditaduras no continente na segunda metade do século XX, na época da Guerra Fria. Obviamente, no contexto da atual Presidência da República, muitíssimo alinhada ao presidente Trump, mais do que o aconselhável, o que ocorre nos EUA tem um peso muito grande sobre o Brasil.
Também temos que considerar o fato de que o presidente Bolsonaro manifestou apoio em relação ao ataque de grupos extremistas ao Capitólio, chegando a afirmar que ocorrerá algo pior no Brasil se o voto da urna eletrônica não puder ser impresso. Fica claro que a queixa serve de pretexto para uma tomada de posição mais radical como a que ocorreu nos EUA. O reflexo do que ocorre no norte do continente sempre existiu em termos de política externa, em alguma medida. As ações econômicas e políticas adotadas por Washington geram uma influência na política e na economia do continente e do mundo. Agora, com o alinhamento de grupos mais à direita, esse reflexo e o prejuízo podem ser muito maiores.
Bolsonaro defende o uso de papel impresso para evitar fraudes. Trump questionou o resultado das eleições realizadas em papel. Qual é o objetivo da insistência de Bolsonaro no voto impresso?
Aparentemente, como já manifestado pelo presidente brasileiro, a intenção é usar o expediente de acusação de falta de transparência no processo eleitoral como motivo que justifique a revolta popular. É preciso considerar que Bolsonaro fará, ou pretende fazer, o papel de porta-voz dos seus apoiadores no sentido de transformar a sua queixa no lamento dos seus eleitores: “O processo não é verdadeiro e, portanto, não vamos aceitar os resultados”. Claro que não há nenhum fundamento nisso. No Brasil, o processo de votação e apuração eleitoral tem se mostrado muito mais eficiente que o americano. Não haveria razões de questionamentos, pois não há qualquer indício de que houve ou pode haver fraude. Sua estratégia é falha e busca atribuir à falta de impressão do voto da urna, uma fragilidade na apuração. Sabemos que os boletins da “zerésima” e de final de votação são distribuídos em todas as seções eleitorais, permitindo a conferência por todos os partidos e fiscais.
A meu ver, é apenas um pretexto para colocar em suspeição as eleições. O que torna a estratégia mais perigosa é o fato que Bolsonaro tem apoio ideológico de grupos militares nas Forças Armadas, tanto no âmbito federal quanto nos estados, nas polícias militares e bombeiros. Assim, uma manobra como essa poderia ser exitosa para ele e desastrosa para o país. A possibilidade de os acontecimentos desenvolverem-se para um estado de violência e de anomia seria e é muito grande. Precisamos dar atenção para o risco que a democracia brasileira corre. As instituições devem agir antes que não seja mais possível evitar.
Quais são os possíveis reflexos dos últimos acontecimentos nos EUA nas eleições brasileiras de 2022?
Os reflexos já são sentidos. O presidente já afirmou que pretende contestar o resultado, caso ele não seja eleito. O impacto disso na cabeça do eleitor brasileiro vai do medo ao apoio. É preciso estar atento e tomar medidas agora. O reflexo é tamanho que estamos discutindo essas afirmações de Bolsonaro. Digo isso, pois, por mais surreal que a fala pareça, o cenário da sociedade brasileira sugere que a ameaça é real e perigosa e que expõe a fragilidade do nosso modelo democrático. O impacto disso pode provocar reflexos nas relações internacionais, na economia e na política. É, sem dúvida, o momento mais perigoso e mais sensível da democracia brasileira da Nova República, após a ditadura militar.
Como evitar um novo colapso na democracia brasileira?
Francamente, os caminhos para evitarmos esse processo já se mostraram e são conhecidos há tempos. Quando o atual presidente votou o impeachment de Dilma Roussef, fez menção e glorificou o torturador da ex-presidente, Carlos Alberto Brilhante Ustra. Essa glorificação não foi reprimida pelo Congresso em nenhum ato disciplinar ou qualquer coisa do tipo. As pessoas sabiam muito bem o que Bolsonaro e seus aliados pensam e fazem em relação ao sistema político. Não obstante, o Judiciário tem atuado muito politicamente, anulando ou tornando sem valor atos do Executivo. Um presidente não pode incitar a desordem e pôr em suspeição as instituições. Com o bando de malucos que o apoiam, basta dar uma breve olhada nas redes sociais e constatar os terraplanistas e negacionistas da vacina que se digladiam para nos preocuparmos e ligarmos o sinal de alerta. Os escândalos que envolvem Michele Bolsonaro, o próprio presidente e seus filhos, já seriam motivo para uma ação de impeachment. Os últimos desdobramentos da crise americana e o posicionamento do presidente, mais ainda. O que vai definir o processo no Brasil, em semelhança ao que ocorreu nos EUA, serão as articulações no Congresso e no Senado envolvendo o “centrão”. Isso vem sendo discutido por vários grupos de sociólogos e pesquisadores, após as eleições que definirão a presidência das duas câmaras federais, os desdobramentos legislativos e os alinhamentos políticos que o “centrão” sinalizar, saberemos se alinharam a Bolsonaro ou se desviaram do presidente para frear as tentativas golpistas já anunciadas.