O futebol é o esporte que move a paixão do brasileiro. Mas um caso grave está acontecendo durante as partidas, o uso do VAR (árbitro de vídeo), desde que foi oficializado, em 2016, está havendo muitas, ou até centenas de ressalvas sobre o protocolo. As sucessivas dúvidas sobre as decisões influenciadas pelo árbitro de vídeo em campeonatos estaduais, Copa do Brasil, Campeonato Brasileiro e outras competições, tem feito todos usarem o termo aVARcalhado.
As polêmicas trazem diversos questionamentos, como a arbitrariedade dos lances capitais; a centralidade do processo na equipe de arbitragem; e a impossibilidade de progresso humano dentro desse protocolo – ou a desumanização provocada pela tecnologia. Some a isso a verdade inconveniente de que, apesar das promessas e de evidências engendradas com a tortura de estatísticas, o árbitro de vídeo sequer deixa o jogo mais justo, o árbitro que está com o apito na boca no gramado tem demorado, 2, 3 e até mais de 4 minutos para definir o lance. Se foi gol, ninguém comemora, pois ele pode ser anulado, virou um futebol sem graça.
O protocolo do VAR parte de uma premissa objetiva: existem lances dignos de serem revisados e outros indignos. Uma falta leve sobre a linha da grande área (logo, pênalti), pode ser revisada. Uma falta leve dois metros antes da mesma linha, não. No papel, o protocolo não deixa dúvidas: o árbitro de vídeo só pode ser chamado em lances de gols, pênaltis, cartões vermelhos e para a identificação de jogadores. Isso está tirando o brilho das belas jogadas, o VAR está parando muito o jogo.
Com a definição anterior dos lances que podem ser revistos já feita, resta apenas aplicar o protocolo. Isso significa, implicitamente, que o árbitro sabe que terá suporte em 4 situações do jogo de futebol (supostamente decisivas ou mais decisivas do que as outras), mas que em todas as outras só poderá contar com seus próprios olhos.
Objetivamente, isso causa um enorme problema, uma vez que a categorização dos lances é não apenas arbitrária (qual o critério para se definir o que são lances capitais?) como é também absoluta, ou seja, ignora o caráter relativo, contingente e simbólico dos lances não binários (sim/não, dentro/fora) que soam secundários na aparência, mas ganham valor dentro do jogo.
A única razão para a existência de um assistente de vídeo é enxergar aquilo que o olho humano não consegue ver. Quando o protocolo, por qualquer motivo, detecta um equívoco e admite nada poder fazer, então há um problema sério – e os problemas desse modelo são inerentes a ele. A segunda dificuldade do VAR me parece mais escandalosa. Todo o processo de revisão ou não revisão está inteiramente centralizado na equipe de arbitragem. Além de restringir as situações de revisão, o protocolo lança mão de um artifício tanto particular quanto perigoso: embora a decisão final seja sempre do árbitro de campo, a decisão do que será ou não revisto está inteiramente nas mãos do assistente de vídeo. Dentro da cabine do VAR ficam 6 pessoas, 3 árbitros com o auxílio de 3 técnicos de imagem, que vai e volta o lance diversas vezes no monitor.
Esta é, sem dúvida, a maior fraqueza do protocolo, e o é por uma razão muito simples: a eficiência do VAR, ao contrário do que dizem os entusiastas (com percentuais de acertos fantasiosos e outros artifícios), não se mede apenas nos lances em que o vídeo é acionado, mas também – e especialmente – nos inúmeros lances em que o vídeo, por imprecisão ou omissão, não é acionado. Isso dá ao assistente de vídeo uma espécie de poder moderador, capaz de controlar a narrativa do jogo como bem entender. Ele pode tanto convidar o árbitro a revisar lances absolutamente questionáveis, como se abster em situações idênticas ou até mais graves.
Dessa forma, dizer que a decisão final é sempre do árbitro de campo tornou-se muito mais um slogan, uma maneira perspicaz de amenizar a pesada mão do vídeo na decisão do árbitro. No fim das contas, é ele (o VAR) quem controla a narrativa do jogo. A decisão final é um detalhe. Por fim, me assusta não apenas a capilarização irrefletida do discurso pró-VAR, mas como não se discutem as consequências, especialmente humanas, decorrentes do protocolo.
O objetivo (aparente) é diminuir o percentual de equívocos da arbitragem com foco nos lances capitais. Se você preferir, este modelo almeja melhorar a qualidade da arbitragem. Mas, repare bem: melhorar a arbitragem não significa, necessariamente, um comprometimento para melhorar o nível dos árbitros. São coisas distintas. Além de ajudar menos do que se alardeia por aí, o VAR expõe e desumaniza duplamente os árbitros de campo – a quem é totalmente subtraído o direito de errar. Nesse modelo, subsiste a frágil aposta de que a tecnologia, pela sua impessoalidade, é a solução para o humano. Daí tratar-se de um modelo (supostamente) comprometido com a arbitragem, mas em nada com os árbitros.
Na verdade, assusta como o discurso da impessoalidade é defendido com tamanha ferocidade, o VAR é o futuro! Não se escapa da tecnologia! Sem que a mesma energia seja investida no desenvolvimento dos árbitros em geral. A profissionalização da arbitragem, um debate obrigatoriamente anterior ao da implementação do assistente de vídeo, é pouco discutida em geral, ainda mais em lugares como o Brasil.
Onde está a comissão, via Federação Internacional de Futebol (Fifa) através da International Football Association Board, destinada ao debate ético e literalmente filosófico que está no coração da arbitragem e do próprio jogo de futebol. Ser humano é um problema na arbitragem com VAR. Não por acaso há essa obsessão pelas revisões cada vez mais mecânicas.
Aumenta-se a pressão sobre toda a equipe de arbitragem, para quem os equívocos, de qualquer natureza, passam a ser cada vez mais inadmissíveis em nome da lógica doentia da eficiência a qualquer custo. É por isso, se ainda não está claro, que há tantos diálogos entre os árbitros de campo e o de vídeo no Brasil: porque o direito ao erro aqui inexiste ainda mais, e os árbitros, cientes disso, tentam se proteger como podem. No médio/ longo prazo, não me surpreenderia se este modelo levasse os árbitros ao esgotamento mental, exatamente em função da pressão desumana a que estão sendo submetidos.
Ao invés de centralizar a abertura de uma revisão nos árbitros, por que não deixar com as equipes o direito de pedir revisões quando bem entenderem? Talvez na mesma lógica do tênis, tem duas revisões por equipe, retirando uma para cada chamada equivocada. Esse simples deslocamento teria amenizado absolutamente todos os problemas citados acima. Da mesma forma, teria diminuído sensivelmente as frequentes reclamações do uso do VAR nos estaduais e no Brasileirão.
O que está no centro do debate não é a tecnologia, é a humanidade presente no jogo de futebol. Ser humano é contraditório, complexo, plural, limitado, fronteiriço… e é assim que a arbitragem precisa ser encarada. Se for enxergada apenas pela técnica e por algumas das bugigangas que ela produz (por vezes para curar problemas que ela mesma criou), vamos continuar no limbo em que já estamos metidos. O VAR virou chacota, chamado agora de aVARcalhado!
*Sérgio Moreira
Jornalista
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