Na última semana acompanhamos a história da menina de 10 anos, grávida do tio após ser estuprada por ele, que passou por uma situação extremamente difícil para conseguir realizar o aborto assegurado por lei em casos como este. A criança teve seus dados divulgados pela extremista Sara Geromini e, tão logo o vídeo feito por ela foi ao ar, grupos religiosos começaram a perseguir a vítima e sua família. Por fim, e após a recusa de um hospital em realizar o procedimento, a jovem conseguiu realizar o aborto e passa bem. Triste é constatar que este não é um caso isolado. O Brasil registra 6 casos de aborto todos os dias em vítimas de estupro entre 10 a 14 anos. Estima-se ainda que a cada hora, 4 meninas de até 13 anos são violentadas sexualmente no país, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019. Mesmo com esses índices, a lei do aborto ainda é um tema delicado e pouco compreendido. Por isso, o Edição do Brasil conversou com advogada e professora de Direito Penal da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst), Clara Maria Roman Borges, para entender melhor esse assunto espinhoso.
Como funciona a lei do aborto no Brasil?
O crime de aborto está previsto nos artigos 124, 125 e 126 do Código Penal. Ao aborto provocado pela própria gestante, a pena fixada é de 1 a 3 anos de detenção; ao aborto provocado por terceiro, sem o consentimento da gestante, a pena fixada é de 3 a 10 anos de reclusão, e ao aborto provocado por terceiro, com o consentimento da gestante, a pena fixada é de 1 a 4 anos de reclusão. No caso de aborto provocado por terceiro, as penas podem ser aumentadas de um terço, quando resultar lesão corporal grave da mulher ou duplicadas quando sobrevém sua morte.
O art. 128 do Código Penal e a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº. 54 (ADPF 54) estabelecem as três situações em que o aborto é autorizado pelo Estado: quando não há outro meio de salvar a vida da gestante; quando a gravidez resulta de estupro e no caso de constatação de feto anencéfalo. O aborto no caso de estupro exige expressamente a manifestação de vontade da vítima e, quando for menor, de seu representante legal.
Qual é o papel do Estado nos casos de aborto?
Ao criminalizar o aborto consentido pela mulher e autorizá-lo emalgumas hipóteses por questões “humanitárias”, o Estado se mostra extremamente conservador e deixa claro que o importante não é a vida da mulher ou do feto, mas a submissão do corpo feminino e de sua sexualidade, às suas regras e ao seu domínio. Quando prevê punição para o aborto, o Código Penal não assegura nenhum direito da mulher ou do feto, só aumenta o número de mulheres pobres mortas em razão de abortos malsucedidos em clínicas clandestinas, que funcionam sem qualquer fiscalização sanitária.
O fato de o Estado punir o aborto, não significa que, ao nascer, aquela criança terá condições mínimas para sobreviver, terá alimentação adequada, educação, lazer, afeto e cuidados médicos. Portanto, o Código Penal só garante que a mãe será colocada numa prisão desumana e não protege a vida de ninguém.
Mesmo com a lei prevendo aborto em caso de estupro, vimos a história da menina de 10 anos abusada pelo tio, onde foi preciso uma autorização da Justiça para ela realizar o procedimento. Como funcionam os trâmites desde o desejo de abortar até que o processo seja feito?
Em verdade, nesse caso não era necessária autorização judicial para a realização do abortamento e nem nos demais casos autorizados no Código Penal e pelo STF. Quando se trata de aborto para salvar a vida da gestante, o médicotoma a decisão de realizá-lo e justifica nos prontuários hospitalares. No caso de estupro, a mulher deve se dirigir à delegacia ou até mesmo no próprio hospital, onde ela deve manifestar formalmente sua vontade de abortar por ter sido vítima de abuso.
No caso de vítima menor de idade, seu representante legal também será ouvido. Quando se trata de anencéfalo, a mulher, munida de exames que constatam a condição do feto, deve manifestar sua vontade de abortar perante o médico. Nesses dois últimos casos, o profissional, porconvicções pessoais, pode se negar a fazer o abortamento e encaminhar a gestante para outro médico.
Existe um tempo para fazer o aborto legal de forma segura? Se a justiça demorar, como fica essa questão?
Não, a gravidez pode ser interrompida a qualquer momento, desde que a mulher tenha manifestado sua vontade. No caso de estupro, exige-se normalmente que ela tenha ido a uma delegacia e noticiado o fato, isto é, feito um Boletim de Ocorrência. Inclusive, nesses casos, ela será encaminhada a um hospital público para realizar os exames de Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST), que anteriormente eram conhecidas por DST’s, conforme Lei nº 12.845/13. Quanto ao caso dos fetos anencéfalos, a Resolução 1.989/12, do Conselho Federal de Medicina, no seu art. 2º, §2º, II, prevê expressamente que a gestação pode ser interrompida a qualquer tempo, independentemente do mês da gestação.
Quem deve denunciar e qual a punição para quem expõe a identidade de mulheres que legalmente fizerem o aborto?
Essa pergunta é complexa, porque remete a uma série de situações, o que demandaria a análise do caso concreto. Nos episódios em que a mulher obteve uma ordem judicial para realizar o abortoe o processo corria em segredo de justiça,dependerá de quem revelou as identidades e informações.Em princípio, se for um cidadão comum ou funcionárioda Justiça,poderá responder pelocrime de divulgação de segredo, previsto no art. 153, § 1º-A,doCódigo Penal, se for ummédicoouadvogado,poderá responder porcrime de violação de segredo profissional, previsto no art. 154, do Código Penal, em ambas as situações é a vítima que deve delatar.
Um Projeto de Lei prevê que vítimas de estupro assistam imagens de aborto para desistir de interromper gravidez. Por que a mulher enfrenta tanta dificuldade em decidir o que fazer com próprio corpo no Brasil?
Existem Projetos de Lei contendo as regras mais bizarras que se pode imaginar, então não é novidade que um parlamentar tenha apresentado um como este. Mas dificilmente será aprovado, pois é evidentemente inconstitucional e viola uma série de direitos da vítima. Entretanto, a mera propositura de um projeto como esse demonstra como a sociedade brasileira não compreende o fato de que a mulher tem direito e autonomia sobre seu corpo e decisões. Vivemos em um país machista que acredita que homens que integram o poder legislativo têm condições de decidir se uma mulher pode ou não interromper uma gestação, porque parte do pressuposto de quehomens seriam superiores e mais capazes de compreender essa questão. Além disso, o discurso religioso, desprovido de qualquer sentimento caritativo e de humanidade também incentiva e aprova que o Estado proíba o aborto, exclusivamente para manter seus dogmas que servem há séculos para controlar e dominar milhões de pessoas.
Ser a favor da descriminalização e regulamentação do aborto, significa ser pró-vida e não o contrário. Descriminalizando e regulamentando, evita-se que mulheres morram em clínicas clandestinas por procedimentos malsucedidos e que crianças sejam abandonadas pela falta de condições econômicas e emocionais de suas mães. Fora tudo isso, como comprovam as pesquisas em outros países, com a legalização o número de abortos costuma diminuir.