Para tentar conter o avanço do novo coronavírus, várias medidas foram tomadas por parte dos prefeitos e governadores brasileiros, entre elas a restrição de circulação e o fechamento de comércios. Porém, qual é o limite entre as exigências sanitárias e o autoritarismo? Para entender melhor sobre essa questão, o Edição do Brasil conversou com Daniel Travessoni (foto), mestre em direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Como o autoritarismo se dá em momentos como estes que estamos vivendo?
Primeiro é necessário explicar o que é autoritarismo. É possível conceituar esse termo como sendo a compreensão política na qual a autoridade dos agentes públicos lhes permitem tomar decisões e implementar medidas que culminem na violação das leis delimitadoras do exercício dos poderes estatais e, assim, resultem na violação, sobretudo, dos direitos individuais, como o direito à vida ou liberdade.
Com a crise sanitária e econômica provocadas pela COVID-19, a sociedade brasileira se deparara com o autoritarismo nos casos em que as autoridades públicas emitem decisões que contrariem as leis em vigor e que resultem na violação parcial ou integral do exercício dos direitos individuais. Podemos mencionar como exemplo as proibições, sem fundamento legal, para o funcionamento de estabelecimentos comerciais, industriais e de fins não econômicos; impedimento do uso e circulação por vias e espaços públicos; limitações ilegais da prática de atividades profissionais lícitas; etc.
Qual é o limite entre exigências sanitárias e violação dos direitos individuais?
A lei estabelece o limite formal e define os parâmetros práticos para o exercício dos direitos individuais. Por exemplo: em geral, as pessoas podem usar espaços públicos para reuniões e realizar atividades privadas, desde que ocorra sem o uso de armas, não prejudique quem está no local e informe ao poder público sobre esse encontro. Por outro lado, há também uma norma que autoriza os agentes públicos, para proteger a saúde da população, impor comportamentos e condutas. Ou seja, os direitos individuais só poderão ser restringidos com base legal, que determinará quais são as condições objetivas em que tais restrições poderão ocorrer. Do contrário, qualquer decisão de um agente público, mesmo que baseada em supostas necessidades sanitárias, implicará em violação desses direitos.
Há uma lei em vigor (Lei Federal número 13.979/2020) que dispõe sobre as exigências e medidas de ordem sanitárias que poderão ser instituídas para a contenção do coronavírus e que, ao mesmo tempo, podem resultar em limitações dos direitos individuais. As eventuais e temporárias restrições a esses direitos por exigências sanitárias só poderão ser implementadas segundo os procedimentos definidos naquela lei. Em suma: é a lei que define o limite entre a instituição de exigências sanitárias lícitas e a violação de direitos individuais concretizada por atos arbitrários.
O que fazer quando um agente público cometer um ato autoritário?
A “prova dos nove” a respeito da violação (ou não) dos direitos individuais será obtida mediante uma criteriosa análise das situações concretas tendo em vista o que as leis em vigor dispõem. Mas, para que isso aconteça, é preciso que as pessoas tenham atenção contínua dos atos praticados por nossos agentes públicos. Portanto, mesmo que em situações graves, como a que estamos vivendo agora, não há justificativa para as autoridades públicas conduzirem de modo distinto do que a lei lhes prescreve.
O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), disse que pode prender pessoas que violarem o isolamento social. Isso é legal?
O governador de um estado é o comandante e chefe da Polícia Militar (PM), por isso, ele tem o poder e o dever de ordenar e manter a atuação daquele órgão. Todavia, se não houver uma lei aprovada pelo Congresso Nacional que tipifique esse delito, esse ato pode ser considerado ilegal e a conduta pode ser caracterizada como autoritária. Mas, se houver uma lei no estado de São Paulo que atribua à autoridade público-sanitária a prerrogativa de instituir o isolamento, mesmo sem a autorização prévia do governo federal, é, em tese, possível alcançar a legalidade da decisão de determinar à PM que tome providências específicas para patrulhar e prender quem praticar o delito de “infração de medida sanitária preventiva”.
Existe algum outro crime que usa a justificativa de proteção à saúde pública para punir/prender as pessoas?
Sim, todos os crimes estabelecidos pelas normas do art. 267 ao art. 285 do Código Penal resultam na violação da saúde pública. Entre eles, podemos destacar o delito de “epidemia” (art. 267), que equivale a “causar epidemia mediante a propagação de germes patogênicos”; e o delito de “falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais” (art. 273). Ou seja, há diferentes condutas que podem ser punidas com o objetivo de evitar o comprometimento da saúde pública.