No meio deste mês, os brasileiros tiveram que ficar em casa para tentar conter o surto de coronavírus, mas esse maior período no ambiente domiciliar evidenciou outra pandemia: a violência doméstica. Segundo dados do Ligue 180, a quarentena recomendada provocou um aumento de quase 9% no número de ligações para o canal que recebe denúncias de violência contra a mulher.
Segundo a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH), do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), a média diária entre os dias 1 e 16 de março foi de 3.045 ligações recebidas e 829 denúncias registradas, contra 3.303 ligações recebidas e 978 denúncias registradas entre 17 e 25 deste mês.
O crescimento das denúncias não se restringe apenas ao nosso país. Na China, onde a pandemia começou, a violência doméstica triplicou no período no qual as pessoas tiveram que ficar mais tempo em casa. Como resposta, por lá, foi criada a #AntiDomesticViolenceDuringEpidemic, para que as vítimas pudessem falar sobre o que estavam passando. Além disso, a Organização das Nações Unidas (ONU) fez um alerta sobre essa realidade e vários países, como França, Itália, Suíça e Portugal, ampliaram a atenção a respeito do tema.
A neuropsicóloga Roselene Espírito Santo Wagner diz que, apesar desses dados assustarem, o número de mulheres que sofrem violência doméstica é ainda maior, pois há subnotificação das ocorrências. “Durante muitos anos, essa prática de relacionamento era ‘normalizada’ e a mulher era tomada como merecedora desse tipo de tratamento. Porém, nos últimos anos, há uma movimentação de autoafirmação feminina. Ainda que desafiador, ela quebra o sistema familiar patriarcal e passa a se empoderar. As mulheres devem ser aliadas e solidárias. Um ‘tapinha’ dói sim”.
Maria Inês Vasconcelos, advogada e especialistas em defesa de minorias e da mulher, lembra que a violência doméstica ocorre dentro do lar, então pode atingir também idosos e crianças, sobretudo meninas. “A pressão do confinamento, provoca uma mudança radical não só no comportamento social, como também de hábitos mentais. A agressividade é potencializada pelo cenário social, econômico e psicológico, que é ainda pior para as famílias de baixa renda, pois há escassez de todo tipo de recurso”.
Os problemas de ordem financeira, como a perda do emprego ou redução de renda familiar, provocam baixa da autoestima, conflitos internos e de masculinidade, além da facilidade para o uso de álcool e drogas, que aumenta o risco de violência doméstica. “O isolamento leva à modificação de comportamentos sociais e hábitos mentais. Os confinados têm uma angústia represada, pois os nervos estão à flor da pele, gerando o estopim para a prática da violência”, diz Maria Inês.
Roselene aponta que este é o momento de manter a sanidade mental, equilíbrio emocional e, por isso, deve-se buscar ajuda. “O auxílio está intimamente ligado à ruptura deste tipo relacionamento. Tanto o abusador/agressor quanto o abusado/vítima necessitam se perceber dentro da dinâmica adoecida da relação. A vítima necessita desenvolver força egóica para se sentir saudável e romper com a aceitação de um modelo desrespeitoso e indigno de viver, já o agressor precisa se enxergar na tipicidade de seu adoecimento. E todos nós, cidadãos, devemos reconhecer, romper o silêncio e salvar vítimas”.
Rede de proteção
A advogada afirma que diante dessas estatísticas, as organizações estatais estão enfrentando a situação com atenção. “As delegacias da Mulher, Promotorias de Proteção ao Menor e Adolescente e os abrigos estão voltados para o acolhimento e efetivação da proteção às vítimas da violência doméstica. Ademais, há um projeto tramitando na Câmara para que o número 180 seja utilizado em qualquer mídia que aborde a violência contra a mulher, como uma forma de otimizar as denúncias e aumentar o leque de possibilidades de se proteger efetivamente”, finaliza.