Home > Geral > Aceitação dos cabelos crespos e cacheados ajuda a combater racismo no Brasil

Aceitação dos cabelos crespos e cacheados ajuda a combater racismo no Brasil

Referência negra no Brasil, a cantora Elza Soares disse, uma vez, que “o mundo é grande demais para não sermos quem a gente é”. Finalmente, essa mensagem começa a reverberar. Uma prova disso é que, na internet, houve um crescimento de 232% na busca pelo termo “cabelo cacheado” no Google. Estima-se que o interesse por cabelos afros subiu 309% nos últimos 2 anos. A onda de aceitação dos fios naturais tem influenciado, inclusive, o mercado publicitário. As buscas por transição capilar cresceram 55% nos últimos 2 anos.

Mas, nem sempre foi assim, um grande exemplo disso é o padrão imposto na sociedade que ainda vitimiza e faz refém boa parte da comunidade negra, principalmente a mulher. Estima-se que 1 a cada 3 mulheres já tenha sido vítima do preconceito por conta da aparência dos seus fios crespos e cacheados. Além disso, 4 a cada 10 mulheres disseram já ter sentido vergonha do seu cabelo.

A psicopedagoga Ângela Mathylde explica que para serem aceitas na sociedade, durante muito tempo, as mulheres negras tinham que se descaracterizar. “Elas eram vítimas de padrões brancos, sentiam que não podiam assumir sua natureza e se viam obrigadas a alisar o cabelo”.

Tal percepção, segundo a cineasta e historiadora Cida Reis vem da colonização. “É histórico o entendimento de que apenas o cabelo liso e grande é bonito. Essa falha surge do equívoco de algumas pessoas de se sentirem mais humanas do que as outras. Os membros colonizadores chegarem no país se colocando em um lugar de absoluto privilégio em detrimento das demais comunidades já existentes, que eram os indígenas e os negros”.

E os reflexos disso foram passando de geração para geração desde a infância. “As meninas são ensinadas que o belo é ter cabelo longo, fazer rabo de cavalo e maria chiquinha e que os fios têm que ser esvoaçantes. Isso, para a maioria das crianças negras, é opressor. As meninas sofriam bullying na escola e tinham que ouvir que o cabelo era ruim, pixaim e até de bombril. Os pentes não serviam para nos pentear e não existiam produtos no mercado que atendessem à textura dos nossos fios”, declara.

Cida acrescenta que quando isso acontecia, em determinada idade, a menina começava a ter o sonho de se encaixar e vinha o desejo de correr e ver seus cabelos balançarem. “A questão capilar foi a que mais causou sofrimento às mulheres”.

A estudante de psicologia Ceres Bifano sentiu isso na pele. “Fui a única negra na escola por um bom tempo. Percebia a diferença da minha aparência com a das outras colegas. Na adolescência também foi complicado. Quando alisava o cabelo me sentia bonita, mas era refém daquilo e se, por algum motivo, não fosse ao salão, deixava até de sair de casa”.

Na fase adulta, ela tomou consciência e deixou a química de lado, assumindo seu cabelo natural. “Sou uma mulher negra e a sociedade fatalmente tem colocado pessoas como eu em um patamar inferior. Romper essas barreiras tem sido meu desafio diário, porque não é só sobre o cabelo, mas também sobre identidade”.

Ângela ressalta que os padrões impostos geram transtornos sociais impactantes. “Sendo um deles a desqualificação do ser, a pessoa busca identidades externas e se esforça para ser reconhecida. No Brasil, a mulher negra é identificada somente pela sexualização e servir. Ela é diminuída a fonte de prazer e, sem perceber, vai se tornando escrava desse sistema”.

Mas, para Cida, essa onda de assumir os cabelos cacheados e crespos tem atingido um percentual grande de mulheres. “É como um rio que vinha represado e agora arrebentou-se e está invadindo tudo. E é isso aí, cabelo black, cacheado, crespo, um maior que o outro, mulheres se sentindo bem, lisas ou não, como quiserem”.

“Mudando o mundo, um cabelo por vez”

Quando o assunto é felicidade, a hair stylist Helen Castro – mais conhecida como Tuty pelas clientes -, garante muitos sorrisos. Especializada em fios cacheados e crespos, a profissional tem ciência de que seu trabalho vai além da estética. “Meu objetivo é incentivar mulheres que estão passando pelo processo de transição capilar a se reconhecerem e se amarem, além de reeducá-las no processo de autocuidado”.

Assumir os cabelos naturais, na visão dela, é um fator de transformação. “Trabalhar nessa área é um ato político, porque toda mulher que atendo procura algo além do que um tratamento capilar, elas buscam liberdade em relação a sua autoestima, empoderamento e enfrentamento do preconceito que sofreram durante a vida não só devido à textura do cabelo, mas, sobretudo, pela cor de pele”.

Ao longo dos 5 anos de trabalho, várias histórias marcaram a vida de Tuty, mas ela recorda uma em específico. “Uma adolescente foi fazer o big chop (significa “grande corte” em inglês e é o ato de tirar toda a parte com química) comigo. Ela tinha uns 13 anos e me identifiquei pelo fato dela alisar o cabelo desde criança, pois sua mãe, assim como a minha, foi ensinada que nossos cabelos não eram adequados. Para que a filha não sofresse tanto, a mãe a submeteu a tratamentos químicos agressivos. O resultado desse corte foi emocionante. Enquanto tirava a parte alisada, os cachos iam surgindo e ela sorria timidamente ao ver que eles ainda existiam. Seus olhos brilhavam e foi uma das cenas mais lindas que já vi. Parei e pensei: Estou no caminho certo, mudando o mundo, um cabelo por vez”.

Futuro antirracista

Manu e Tuty em um encontro empoderado e feliz - Crédito: Arquivo Pessoal
Encontro empoderado e feliz entre Manu e Tuty – Crédito: Arquivo Pessoal

Para a hair stylist, o conceito de empoderamento se torna vazio quando tratado de maneira individual. “Na minha percepção, ele é coletivo. Não sou livre enquanto outras mulheres negras sofrem racismo. Não há poder no singular. Ou ele é de todos enquanto classe ou não existe, porque todos os que são iguais estão a mercê das mesmas opressões. É preciso que a gente compreenda isso e coloque em prática”.

Ela acrescenta que, hoje, esse movimento planta uma semente que será colhida no futuro. “Sou de uma geração em que éramos treinadas a odiar nossa estética, mas essa mesma geração descobriu que é possível voltar às origens. Começamos a impactar o futuro, pois vamos criar nossas crianças para que não passem pelo que passamos, estamos plantando um futuro antirracista”.

Um mundo onde crianças como a Emanuelly Rodrigues, de 7 anos, se sinta acolhida. Negra e dona de um black power, ela fez, recentemente, seu primeiro corte com a hair stylist. “Tuty disse que meu cabelo tem formato de coração, porque sobe, depois cai e gostei disso. Ela me ensinou a passar creme, óleo, cortou meu cabelo bem bonito e jogou ele pra cima”.

Tuty conclui dizendo que ainda há muito o que avançar. “É preciso compreender que mais importante do que a aceitação da sociedade é necessária a autoaceitação, aprender a nos amar como somos. Fico feliz em saber que as mulheres do futuro serão mais empoderadas e encontrarão forças para fazer isso com menos feridas do que nós”.