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Pelo menos 12 mil crianças brasileiras ficaram órfãs por causa da COVID-19

Foto: Caleb Woods/Unsplash

Felipe Garcia, 36, era gerente em uma empresa de proteção veicular e, segundo a família, vivia uma fase feliz. Por causa da profissão, viajava muito e costumava gravar vídeos animados para os parentes dentro do carro enquanto percorria estradas. Muitos deles para o filho Lucas, de 4 anos, apelidado de “negão do pai”. Em setembro do ano passado, Felipe faleceu em decorrência da COVID-19 e passou a ser chamado de “estrelinha” pelo menino. Lucas faz parte de uma triste estatística: assim como ele, ao menos 12.210 crianças de até 6 anos no Brasil ficaram órfãs de um dos pais vítimas da pandemia.

Os dados foram divulgados pela Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen- -Brasil), entidade que representa os Cartórios de Registro Civil do país. Ainda segundo o levantamento, 223 pais faleceram antes do nascimento dos filhos, enquanto 64 crianças, até 6 anos, perderam pai e mãe vítimas do novo coronavírus.

Perder uma pessoa amada é sempre doloroso. No entanto, de acordo com os especialistas em saúde mental, o luto infantil apresenta particularidades porque o significado da morte só é compreendido à medida que a criança cresce. “Ela tem uma percepção muito diferente dos adultos. Com a idade e o desenvolvimento cognitivo, essa compreensão vai mudando. Com menos de 3 anos, por exemplo, ela entende a morte apenas como ausência ou falta. Entre os 3 e 5 anos, como a imaginação está aflorada, acredita que o ente querido esteja dormindo ou viajando. A partir dos 6 anos, percebe que a pessoa não vai voltar, que é algo que acontece com todo ser humano. Porém, é só a partir dos 10 anos que ela começa a entender o falecimento de forma mais genérica”, explica a psiquiatra infantil, Jaqueline Bifano.

A psicóloga Katiúscia Nunes destaca que, apesar de não ter recursos cognitivos e emocionais para elaborar a morte, os pequenos vivenciam sentimentos da perda. “É algo que trará impactos ao longo de toda vida, devendo a família e toda a rede de suporte deste menino ou menina ficar atenta às emoções e condutas apresentadas, oferecendo apoio e acolhimento”, reforça.

Desde a partida de Felipe, Lucas apresenta mudanças de comportamento. “Expliquei que o papai foi morar no céu e que tinha virado uma estrelinha. No começo, parecia que não ia ser tão difícil, acho que ele achou que ele voltaria. Mas, ele pergunta do Felipe todos os dias, questiona por que Deus levou o pai dele. Diz que está bravo com o pai por não voltar. Toda vez que tenho que sair, ele pergunta se vou voltar ou vou para o céu também. Além disso, ele fica irritado facilmente. É muito difícil”, conta Lahis Schmidt, 29, mãe do garoto.

Além da alta irritabilidade, outras mudanças de postura podem ocorrer. “Perda de interesse, isolamento social, dificuldade de expressar as emoções, reações hostis em relação aos outros, sentimento de culpa, sintomas de depressão e ansiedade, bem como alterações somáticas como queda do sistema imunológico, insônia, dores e dermatites”, afirma Tiago Mendes, psicólogo e professor de psicologia.

Segundo a Ana Cláudia Garcia, 33, irmã de Felipe e tia e madrinha de Lucas, foi necessário procurar ajuda profissional. “Ele tem sofrido muito e acho que cada vez será pior. Procuramos um neurologista para iniciar o tratamento, pois ele desenvolveu vários medos e chora bastante. Notei que se apegou muito a mim e nos falamos várias vezes ao dia”, conta.

Jaqueline explica que, independentemente da idade, o luto é um processo que precisa ser vivido. “É fundamental entender que a realidade é processada aos poucos. Os familiares devem dar a liberdade e encorajar que seus filhos falem sobre os sentimentos e pensamentos tristes e dolorosos, expor para eles que as pessoas que ficaram também estão sofrendo. O fato de relembrar quem partiu também é fundamental. Vale contar histórias, mostrar fotos e objetos que tenham a ver com a pessoa que faleceu. Outro ponto importante é não tentar ocupar o espaço deixado pelo ente querido que se foi”.

A orientação de Mendes é fornecer uma escuta atenta. “É essencial promover a comunicação aberta e segura dentro da família, informando sobre o que aconteceu, garantir que terá o tempo necessário para elaborar o luto, que terão um ouvinte compreensivo toda vez que expressarem saudade, tristeza, culpa e assegurar sua proteção”, diz.

Como explica Katiúscia, é natural que a família precise de ajuda neste momento. “Vale ressaltar, que caso haja necessidade, existem profissionais preparados para auxiliar famílias, adultos, adolescentes e crianças a passarem por esse doloroso processo e auxiliar na acomodação e integração da perda à nova realidade da vida”, conclui.