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Ministério da Saúde coloca em risco décadas de conquista na saúde mental

O Ministério da Saúde divulgou uma nota técnica (nº11/2019) propondo novas diretrizes de saúde mental. Entre as mudanças apontadas, o documento dá aval para a compra de aparelhos de eletroconvulsoterapia para o Sistema Único de Saúde (SUS). A medida gerou polêmica e foi encarada como retrocesso por diversos especialistas da área.
Para esclarecer sobre o tema, o Edição do Brasil conversou com Filippe de Mello, conselheiro e coordenador das comissões de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas e de Psicologia e Relações Étnico-Raciais do Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais (CRP-MG).

Por que a nota tem sido alvo de polêmica?
Ela apresenta o retorno daquilo que lutamos há mais de 40 anos no Brasil para extinguir, que é essa lógica e prática manicomial. Esses métodos são agressivos e enxergam o sujeito apenas como paciente e não como ser humano. Essa nota agride e afronta anos de pesquisa de trabalhadores da saúde mental, que buscam conquistar a cidadania das pessoas que têm algum sofrimento psíquico. Podemos encarar como um grande retrocesso.

Quais os impactos dessa medida?
A mais grave de todas é o retorno do asilamento do sujeito que sofre psiquicamente. Tivemos em 1923 a criação de um grupo chamado Liga Brasileira de Higiene Mental, no qual fez crescer o sistema psiquiátrico. Na década de 1970 tivemos o maior parque manicomial da América Latina.
Chegamos a esse patamar trancafiando nos hospícios as pessoas negras, pobres e psicóticas. Se pensarmos nos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), temos a maior parte da população brasileira negra e pobre. O que nós teremos será uma perseguição a essa população que já esteve no manicômio. É mais uma demonstração de racismo estrutural e de uma violência da classe médica que não pretende tratar, mas ganhar dinheiro às custas do sofrimento de um grupo. É a chamada ‘indústria da loucura’.

O que é eletroconvulsoterapia? Como é feito o procedimento?
A eletroconvulsoterapia é um método de trabalho criado por um médico em 1936. Esse procedimento sempre foi algo muito ruim e pouco estudado. Por isso não existem dados suficientes para provar seu caráter terapêutico. Na verdade, exerce uma função punitiva e violenta, sendo extremamente invasiva.
Atualmente, a técnica é feita com anestesia geral e o número de sessões é determinado pelos médicos. O sujeito também recebe relaxantes musculares para que os músculos não sofram com as convulsões. Os eletrodos são posicionados na região das têmporas e são aplicados impulsos elétricos. Depois, aguarda a recuperação e está liberado, com pouca avaliação e cuidado.

Possui algum risco?
Um terço dos procedimentos podem dar errado, um terço pode dar certo e um terço pode produzir efeitos ainda desconhecidos. As visitas que fizemos em hospitais psiquiátricos que ainda aplicam o eletrochoque mostram que a prática traz uma baixa condição de qualidade de vida. Mesmo sendo regulada e feita sob anestesia, vemos uma perda significante nas pessoas que passam pelo eletrochoque.
Acompanhei um caso em que uma pessoa passou por uma depressão grave e fez o procedimento. Um dia após sair do hospital, cometeu suicídio. Os médicos não têm condições de perceber e não ficam sabendo dessas situações. E, se ficam, fecham os olhos e continuam aplicando o método. Não sabem o que acontece depois que o sujeito tem alta do hospital.

Para quem é indicada a eletroconvulsoterapia?
Para ninguém. O argumento que a medicina usa são para casos de catatonia, que são aquelas pessoas que ficam imóveis. Se na esquizofrenia as taxas de prevalência já são baixas, os índices de catatonia considerados mais graves são menores ainda. A justificativa para uso da eletroconvulsoterapia é falaciosa. É mais uma questão econômica no qual querem ganhar dinheiro aplicando eletrochoques. Eles conseguem continuar com um lucro muito grande, com um trabalho extremamente rápido, violento e irresponsável.

Há relatos de mau uso da eletroconvulsoterapia. Isso poderia acontecer novamente?
Temos um grande trabalho no CRP-MG que é de fiscalização desses espaços, quando existem psicólogos na instituição. No entanto, fica difícil acompanhar todos os serviços existentes. Então, a perseguição ou o uso indiscriminado do eletrochoque vai acontecer. A nota ainda está em discussão e provavelmente será aprovada, pois a classe médica é favorável.

A nota privilegia o tratamento em hospitais psiquiátricos. Como você avalia essa questão?
Hoje em dia, conseguimos tratar as pessoas em liberdade e com dignidade, mesmo casos mais graves. Partimos do pressuposto que se a pessoa enlouqueceu em liberdade, também será em liberdade que receberá os cuidados. É preciso pensar diversos caminhos para reinserção social.
Trancar não é tratar, basta a gente pensar no sistema prisional brasileiro. É um dos maiores do mundo e não temos condição nenhuma de dizer que aquilo pode fazer bem.