Mulher proibida de tremular a bandeira do seu time, de tocar na bateria da torcida organizada, ser assediada na arquibancada por usar um short em um dia que seu time joga debaixo de 38 ºC, ter que “provar” que sabe a escalação de jogadores ou que entende a regra do impedimento e até reivindicar que a camisa feminina do seu time de coração tenha as mesmas cores e o mesmo emblema que o modelo masculino. Parece surreal que no séc. XXI seja preciso lutar por pautas como essas. Mas, em 2017, essa indignação uniu centenas de mulheres que tinham algo em comum: amam futebol e seus times e estavam cansadas.
Morando no Rio de Janeiro há 15 anos, a paulista Penélope Toledo é corintiana. “Nestes anos, fui em todos os jogos do meu time na cidade, mas quando o Corinthians foi campeão, em 2015, contra o Vasco, não pude ir porque mulher não entra em São Januário (estádio do Vasco da Gama). Os ingressos foram todos vendidos nas torcidas organizadas, não teve bilheteria. Meu clube foi campeão na cidade que moro, mas eu e as outras torcedoras ficamos sem ingressos porque eles decidiram por nós que era perigoso”, conta.
Em um universo majoritariamente masculino e vivenciando situações de assédio e arrogância ao longo de sua jornada nas arquibancadas, não dá para dizer o que foi exatamente a gota d’água para Penélope. Mas tudo começou num grupo de WhatsApp que ela criou para reunir torcedoras para discutir machismo e futebol. “O objetivo inicial era um encontro no Dia das Mulheres, mas o movimento ficou muito maior que isso. Havia necessidade, porque foi só lançar a ideia que o movimento começou a crescer e agora, com apenas um ano, já está no país inteiro”, lembra.
O primeiro encontro foi em um bar da Lapa, no Rio, mas o espaço ficou pequeno. Mulheres de vários outros estados também estavam incomodadas com o machismo nas arquibancadas e queriam participar. Em busca de apoio, elas procuraram o Museu do Futebol, localizado na entrada principal de um dos mais antigos estádios brasileiros, o Estádio Municipal Paulo Machado de Carvalho, o Pacaembu, em São Paulo. E foi lá, no dia 10 de junho de 2017, que 350 mulheres de 13 estados brasileiros, representando mais de 40 torcidas e coletivos de futebol se reuniram para o 1º Encontro Nacional de Mulheres da Arquibancada.
Aira Bonfim, historiadora e pesquisadora do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB) – área do Museu do Futebol dedicada à pesquisa e gestão de acervos, ajudou a organizar o encontro. “É muito significativo pensar que somos conhecidos como o país do futebol, mas que logo na origem, esse esporte atraiu muitas mulheres, tanto por gostar de torcer ou jogar e, de alguma forma, isso gerou incômodo a ponto de se criar um decreto de lei que proibia as mulheres de jogarem futebol (no governo ditatorial de Getúlio Vargas) e se fala muito pouco disso. Por muitos anos, as gerações naturalizam comportamentos e questionam pouco”, explica.
No dia do encontro, não houve espaço para rivalidade, seja feminina ou de times. “Vimos meninas fazer vaquinha para as rivais conseguirem comprar passagens para ir ao encontro. Isso mexeu muito com a gente. Foi maravilhoso, uma das coisas mais bonitas que vimos no pré-encontro”, detalha Kiti Abreu, uma das organizadoras do Movimento Mulheres de Arquibancada.
Arquibancadas atleticanas e cruzeirenses
Em 2016, o desfile de apresentação dos uniformes do Atlético Mineiro foi destaque nacional pela objetificação dos corpos femininos: calção para os homens e biquíni para as mulheres. Um ano antes, o Feministas do Galo, que também faz parte do Movimento Mulheres de Arquibancada, foi formado.
Desde então, as lutas variam e aumentam. “As camisas do time postas à venda são, majoritariamente, masculinas. O número de femininas é muito inferior, embora a quantidade de mulheres interessadas em futebol seja crescente. Não são raros os casos de assédio nos estádios e redes sociais e a diretoria (que inclusive não tem mulheres em sua composição), não se manifesta. Recentemente, após uma derrota em um jogo, no qual torcedores se manifestaram negativamente nas redes sociais, a diretoria estava mais preocupada em passar o número de WhatsApp para torcedoras do que responder sobre o futebol do time”, critica o Feministas do Galo.
Mas não é só isso, as atleticanas do coletivo querem a gratuidade infantil ampliada para todos os setores do estádio, para possibilitar que as mães torcedoras acompanhem os jogos e consigam formar novos torcedores. “Pleiteamos, ainda, o retorno das atividades do futebol feminino, com investimento de verdade e comprometimento com a modalidade, formando categorias de base e treinando em Vespasiano, como o masculino. Acreditamos que essas mudanças podem ser mais reais e alcançáveis com o aumento do número de mulheres no quadro diretor e conselho do clube”, declara a porta-voz do coletivo de cerca de 50 mulheres.
Do lado celeste, o Comando Feminino da Máfia Azul existe desde o início da década de 1980 e surgiu de torcedoras que, até então, apenas acompanhavam os namorados, integrantes que fundaram o Máfia Azul. Elas abriram o caminho para outras cruzeirenses que, hoje, formam o conselho da torcida protagonizada por mulheres da capital e de cidades do interior.
Ana Liberato, integrante do conselho, garante que a relação com os colegas da Máfia Azul é de respeito e voz ativa. “Conseguimos nosso material, espaço e temos meninas tocando na bateria da torcida, participando do Muay thai. Temos nosso lugar na sede”. Ana acredita que o número de mulheres nas arquibancadas já aumentou e só tende a crescer. O que dá ainda mais sentido a lição que não tem volta: “Lugar de mulher é na arquibancada, sim!”.