No dia a dia é comum as pessoas se inspirarem em personagens das novelas: o corte de cabelo, determinado acessório, roupas e, até mesmo, os bordões se popularizam a cada nova trama exibida. Contudo, qual deve ser o limite da influência dos folhetins em nosso cotidiano?
De acordo com o doutor em comunicação e pesquisador de televisão Gilvan Araújo muitas pessoas depositam nesse entretenimento a tarefa de informar a população sobre temas necessários e factuais que deveriam ser providos pelo jornalismo e, principalmente, pela educação. “A novela não tem nenhum propósito de espelhar a realidade, tudo que é mostrado por meio dela é no intuito de contar uma história”. Confira a entrevista:
Qual é o papel e o público-alvo da novela no Brasil?
A principal função da novela é entreter as pessoas. Tanto que, no começo, era comum que elas fossem romances. Geralmente, o público são idosos e mulheres. O sexo feminino se sente mais atraído por esse tipo de entretenimento.
Qual foi a história das tramas no país com o passar dos anos?
As novelas já foram grande sucesso há alguns anos atrás, mas isso tem mudado. “Selva de Pedra”, por exemplo, chegou a atingir 100 pontos de audiência. Hoje, se a trama chega a 35 pontos, os autores ficam satisfeitos. Acontece que elas não são mais tão atrativas para o público. O gosto do telespectador mudou e segurá-lo por 180 capítulos não é tão fácil. Penso que chegou o momento de readequar e atualizar os roteiros.
Mesmo com o advento da TV por assinatura, as novelas continuam sendo um produto de massa?
Quem tem acesso a serviços que abrem um leque de opção, como a TV por assinatura e o Netflix, acaba não acompanhando novela. Contudo, existe um grande público que ainda assiste a TV aberta, principalmente a população de baixa renda. Eles ficam presos no passatempo oferecido pelos canais livres e acabam assistindo aos folhetins.
A internet chega para mensurar o envolvimento do telespectador em relação ao folhetim, inclusive, alterando o roteiro?
Hoje, a gente vive em uma era de transmidiação e pós-midiação. A TV de repente está na internet, que está no celular. Isso tem seu lado positivo, que é o fato da novela ser vista como uma obra aberta e passível da influência de quem assiste. Porém, essa prática também tem um lado negativo, já que se trata de algo autoral. Glória Perez escreve “A Força do Querer”, baseada em algo que imaginou e se um personagem não agrada, ela tem que mudar a trama. Chega uma hora que não é mais o roteiro inicial. E aí ninguém mais tem a autoria, o público se perde no enredo, porque a emissora quer agradar todo mundo e acaba não agradando ninguém.
De que forma o grande público pode ser influenciado pela novela?
Da mesma forma que pode ser influenciado pelo noticiário, por exemplo. A base do conhecimento de qualquer produto televisivo vai do nível de educação de quem o recebe. Longe de querer ser preconceituoso, mas fazendo uma reflexão sobre a realidade do público, alguns autores como Marilena Chaui, chamaram a audiência brasileira de medíocre, William Bonner chegou a nos comparar com o Homer Simpson para dizer que não somos inteligentes. Falta instrução para entender que aquela obra está contando uma história que pode ter uma analogia com o real, mas está longe de ser um documentário.
Na atual novela das 21h existe uma discussão sobre a transexualidade, que é muito interessante, pois ajuda as pessoas a entenderem o que é. Mas, dizer que, por causa disso, as pessoas irão se tornar transexuais é um pouco demais. A novela não tem esse poder. Quem tem que explicar isso é a educação e não a ficção.
Dizem que a vida imita a arte, mas no caso das novelas, não seria o contrário, uma vez que elas retratam o que acontece na sociedade?
A novela não tem nenhum propósito de espelhar a realidade, tudo que é mostrado por meio dela é no intuito de contar uma história. Os personagens nunca existiram, mesmo que a trama seja baseada em fatos reais. Inclusive, acreditar que a novela é fiel ao mundo real é um perigo. O que deveria espelhar a realidade, quase nem existe mais, que é o jornalismo.
Muita gente encaixa a irrealidade à realidade e acredita que todos os personagens de fato existem. Um monte de mulher quer virar traficante para ganhar dinheiro, como a personagem da Juliana Paes (Bibi). Elas se identificam com a atriz e almejam entrar para criminalidade da mesma forma que querem a unha, a roupa e o cabelo. Essa é a proporção, as pessoas não conseguem desconectar a novela da vida real.
Em “Avenida Brasil”, Isis Valverde vivia uma periguete. Na 25 de Março, o produto que mais vendia era uma correntinha que a personagem usava na barriga. A atriz, com sua interpretação, conseguiu passar uma ideia diferente do que é imposto. As meninas de periferia passaram a achar que, a partir dali, seriam tratadas de uma forma distinta, já que a Suelen era respeitada. A realidade não é essa. Elas continuaram sofrendo preconceito e, quando a novela acabou, voltaram a ser taxadas de prostituta como se isso fosse algo ruim. É pejorativo e preconceituoso.
Você tem percebido que as tramas vêm buscando fugir dos estereótipos?
Infelizmente não. A série Mrs. Brown, por exemplo, trata de um casal de negros – Taís Araújo e Lázaro Ramos -, bem sucedidos artisticamente, mas eles possuem esse status porque são cantores. Isso não foge à realidade da Ludmilla ou da maioria dos MCs. Ou seja, para fazer sucesso no Brasil, o negro continua tendo que ser jogador de futebol ou cantor. Ele não pode ser empresário, médico, advogado. O termômetro para saber onde as telenovelas deram conta de não mais estereotipar é o dia que isso for algo comum. Acredito que a novela está tentando avançar, mas falta muito para conseguir isso.
Existe uma corrente em representar as minorias na TV?
As novelas sempre deram espaço para as minorias. No primeiro capítulo de “Babilônia”, Nathalia Timberg e Fernanda Montenegro beijaram na boca. Nesse mesmo episódio, outra personagem provocou o acidente de uma amiga para pegar o ingresso dela e ir a uma festa. O principal comentário do público era o beijo gay. Isso mostra que a audiência estava mais preocupada com o relacionamento entre duas personagens do mesmo sexo do que em discutir a ética nas relações interpessoais.
Os autores estão preocupados em dar mais espaço para esses grupos ou isso é oportunismo?
Essa abertura é no sentido de falar: “Olha, a sociedade é assim”. E se as pessoas não encararem o real, então tem algo a ser revisto. Vamos ser honestos, a sociedade, em geral, é hipócrita. Discutir a ficção é importante, mas as pessoas não podem deixar de falar da vida real. Tem uma palavra que pode até parecer repetitiva, mas que é necessária: respeito. E não é a telenovela que vai ensinar isso, mas sim as diferenças existentes na sociedade.
Foto: Fábio Rocha/Gshow