Quais são os motivos que levam algumas pessoas a apostarem alto em jogos de cartas, roletas, bingos ou até mesmo em cassinos? Esse é um tema de grande importância e que tem ganhado destaque. Na novela “A Força do Querer”, da Rede Globo, a atriz Lilia Cabral interpreta Silvana, uma jogadora compulsiva, que chega a mentir e pedir dinheiro emprestado para conseguir manter seu vício.
O problema é sério, tanto que a Organização Mundial da Saúde (OMS) colocou o jogo compulsivo no Código Internacional de Doenças, ao lado da dependência do álcool, cocaína e de outras drogas. Segundo levantamento feito pelo departamento de psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP), a compulsão por jogos atinge cerca de 1% da população brasileira, totalizando mais de 2 milhões de viciados.
Para explicar as consequências que esse vício traz para a vida de quem joga e as razões que levam uma pessoa a criar uma dependência, o Edição do Brasil conversou com o médico psiquiatra e pesquisador do Ambulatório de Jogo Patológico do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, Henrique Bottura.
Como identificar uma pessoa viciada em jogos de azar?
O principal aspecto é que ela apresenta sinais de que não tem o controle sobre o impulso de apostar. Essa pessoa, normalmente, afirma que nunca mais vai fazer isso e no dia seguinte está jogando. Ela diz que vai gastar pouco e, às vezes, vai o salário inteiro em uma noite. O viciado passa horas jogando e volta para a casa de jogo para tentar recuperar o que perdeu.
Quais são as principais motivações para o jogo? Qual o grupo mais atingido?
As razões variam de indivíduo para indivíduo. O processo no homem é mais longo. Muitas vezes, eles começam a jogar mais cedo, por volta da adolescência, apostando em jogos que envolvam algum tipo de estratégia, como sinuca ou pôquer. Isso começa como um lazer, vira hábito, vai perdendo o controle e se torna um vicio. Em geral, nas mulheres, o jogo está associado a escapismo, ou seja, para se livrar de sensações desconfortáveis. Normalmente, acontece depois de alguma perda, rompimento ou dor. Elas começam a jogar por volta dos 35 anos, geralmente, em caça- níqueis. Ao redor do mundo, o grupo mais atingido pelo vício são os homens. É uma média de dois para cada mulher.
Quais os riscos e consequências para o jogador?
O jogador desenvolve uma dependência comportamental muito grave. Ele passa a mentir para conseguir jogar, perde compromissos e, às vezes, tempo de trabalho. Os prejuízos são familiares, sociais, profissionais e financeiros. Além disso, o viciado também perde a moral e o respeito. Se não tratado, o fim da linha de um jogador é se tornar um mendigo ou tirar a própria vida. Como exemplo na novela, a personagem fica negando seu vício e não tem consciência de que aquilo seja um problema e traz uma série de consequências em relação a esse comportamento. A trama está mostrando uma fase inicial em que o paciente ainda não procurou tratamento.
O vício é considerado uma doença?
Sim, chama-se Transtorno do Jogo e é o primeiro modelo de uma dependência comportamental. Isso quer dizer que o jogo é uma condição em que o indivíduo tem uma dependência, mas que não necessita de uma substância. Nos livros de diagnósticos mais modernos de psiquiatria existem “dependências químicas” e “não químicas”. O Transtorno do Jogo é a primeira e única doença nesse capítulo. É uma condição grave e que, muitas vezes, não tem a devida importância.
Existe tratamento? Como ele funciona e qual o papel da família?
Sim, os modelos atuais envolvem psicoterapias, atendimentos médicos e seguimentos pós-terapêuticos. O tratamento psicoterapêutico modifica uma série de questões do funcionamento cognitivo da pessoa. Muitas vezes envolve trabalho psicanalítico em que atuamos nos conflitos interiores. Temos também o auxílio medicamentoso.
Hoje, existem remédios que agem em áreas específicas do cérebro e deixam a pessoa vulnerável ao comportamento repetitivo de jogar. É importante lembrar que a pessoa que tem problemas com vício não se cura totalmente. Ela melhora e precisa tomar cuidado para manter esse novo padrão de vida e não se expor novamente. A família precisa criar as condições para que o paciente chegue ao tratamento. Tem que saber apoiar, ser consistente, atenciosa e entender que muitas das mentiras que eles contam e os atos errados que cometem, estão relacionados ao comportamento de vício. Isso nao define o caráter da pessoa e sim o grau da doença.
Existem projetos de lei em tramitação para legalizar jogos de azar. Qual sua posição sobre isso?
Quanto mais disponível o jogo estiver, maior será o número de pessoas vulneráveis a ele. A liberação vai favorecer a ter mais jogadores patológicos, mais famílias sofrendo e mais gente tendo problemas com isso. Antes, quando os jogos de azar eram liberados, a fila de espera de atendimento era de um ano e meio. Hoje, demora cerca de um mês. Caso seja liberado novamente, podemos ter muito mais gente com esse tipo de problema.
Proibir resolve o problema da dependência?
O problema da dependência não, porque sempre teremos casas de jogos ilegais. Mas proibir reduz a exposição e, portanto, diminui a prevalência. O que não pode acontecer é simplesmente liberar e não ter nenhum tipo de campanha ou modelo assistencial para essas pessoas que vão ficar doentes. Se hoje temos 2 milhões de jogadores com problema no Brasil, teríamos um aumento para 4 milhões a longo prazo.
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