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“Celular não pode ser considerado uma tecnologia neutra”, diz filósofo

Marcelo Galuppo

Você tem uma estimativa de quanto tempo passa mexendo no celular? Segundo o relatório anual da App Annie, companhia de análise do mercado mobile, no ano passado, cada brasileiro que possui smartphone passou, em média, 4,8 horas por dia utilizando o aparelho. A nova marca representa um aumento de 1 hora em relação a 2019, que era de 3,8 horas. Nesse ranking, o Brasil só fica atrás da Indonésia, com 5,2 horas diárias. Durante a pandemia, a estimativa é que esse tempo tenha crescido 20% no mundo todo.

Sobre a relação atual da humanidade com esse dispositivo, o Edição do Brasil conversou com Marcelo Galuppo, filósofo e professor universitário.

Como você avalia a nossa relação atual com o celular?
Ele virou uma extensão do corpo humano? O que significa “extensão do corpo humano”? Roupa, sapatos, óculos, dentaduras, muletas e próteses são uma “extensão do nosso corpo” em um sentido diferente de relógio, carro e brincos. Todos representam uma alteração no modo como nos relacionamos corporalmente com o ambiente, mas roupas e óculos assumem funções biologicamente determinadas, enquanto relógio, brinco e carro têm funções idealmente do mundo das ideias ou socialmente determinadas. Enquanto os objetos que são uma extensão biológica do corpo prolongam a natureza na cultura, os que são uma extensão social ou ideal do corpo instituem uma clivagem, uma ruptura na natureza.

Os celulares estão entre os dois grupos, porque em parte desempenham funções biológicas, por exemplo, permitindo que minha voz chegue mais longe e, em parte, apenas sociais, é só lembrarmos da representação de status ligada a certos aparelhos. Ele amplia nossas potencialidades, mas também institui um corte, uma interrupção da natureza. Isso quer dizer que o celular é um objeto paradoxal, que expande os limites do corpo e lhes impõe um fim ao mesmo tempo.

Na sua análise, quais são os principais prejuízos do uso excessivo do smartphone?
Alguém já disse que, quando estamos conectados, não estamos nem presentes nem ausentes. Essas duas posições, presença e ausência, sempre caracterizaram a natureza humana, que agora está sendo alterada pelo surgimento de uma nova possibilidade: conectado.

Sabendo que a interface de alguns sites e aplicativos são projetados para nos manter conectados o maior tempo possível, o problema é a tecnologia ou uso que fazemos dela?
O problema é a tecnologia. Muitas pessoas acham que elas são neutras em si mesmas, e que apenas seu uso é que é bom ou mau. Rubem Alves dizia que isso seria como pensar que um bolo é bom em si mesmo: depende de quem come. Tecnologias, como as redes sociais e o celular, cujo principal objetivo é nos tornar viciados, não podem ser consideradas neutras, afinal elas criaram necessidades que não existiam antes.

É bem estudado o fato de que as redes sociais viciam por meio do mesmo mecanismo que drogas recreativas: cada vez que uma postagem minha no Instagram recebe uma curtida, é liberada dopamina no meu cérebro. E, quando isso ocorre, ele precisa de mais para sentir prazer. A gente vai ficando aos poucos viciados – literalmente – nas redes sociais, e querendo passar mais tempo nelas.

Considerando a realidade atual, em que o aparelho é usado para se relacionar, trabalhar, comprar, etc. É possível ter uma “régua” para medir um uso saudável que se aplique à maioria?
Nem sempre percebemos que uma coisa nos faz mal, mas, quando compreendemos que uma coisa nos faz mal é porque ela faz mesmo. Ela reduz nossa capacidade de decidir, nossa liberdade. Se o nosso ideal de vida não corresponde à nossa vida real, alguma coisa precisa ser mudada. Se a gente nota que o celular está fazendo mal é porque está de fato fazendo isso. Existem vários mecanismos que controlam essa compulsão pela conexão, desde programas que você pode baixar, como o Focus Plant, mas várias pesquisas mostram que o melhor modo de controlar a compulsão é deixá-lo em outro cômodo da casa. Em hipótese nenhuma, leve-o para o quarto, e se você está na sala, deixe-o na cozinha.

Somos de gerações que nasceram antes do celular, mas como crianças e adolescentes podem ter alguma referência de formas de se relacionar sem o aparelho?
É uma utopia achar que essas faixas etárias vão diminuir esse consumo? O cérebro humano passa por transformações ao longo do tempo. Ou melhor, ao longo de um longo tempo. Demora-se milhares de anos para que ocorra adaptação natural. Ou seja, o cérebro de crianças que nasceram no início do século XXI não é diferente das que nasceram no início do século XX. Experiências como ir à escola são muito importantes para que elas tenham a oportunidade de interagir sem a intervenção de um aparelho que faz a intermediação entre os seres humanos, para que aprendam a separar momentos em que o celular é admitido daqueles em que ele não o é.