A novela “A Força do Querer”, da Rede Globo, traz a público um assunto polêmico: a identidade de gênero. Na trama, Ivana, vivida pela atriz Carol Duarte, sente não se encaixar no corpo de mulher. Além dela, há também Nonato, travesti interpretado por Silvero Pereira, que mostra as inúmeras dificuldades vivenciadas no dia a dia, dentre elas, a inserção no mercado de trabalho. O assunto é tabu em nossa sociedade. Mas, de acordo com o doutor em psicologia e pesquisador do campo de estudo de gêneros, Cláudio Alves, é importante que seja retratado na mídia. O especialista ressalta: “É preciso tirar esse assunto dos guetos e promover a circulação do conhecimento e das informações”.
O que é transgênero?
Pensando pela perspectiva psicológica é uma forma de pensar bastante ampla. Se considerar a psicologia clínica, entende-se pessoas trans em um ponto de vista patológico. Já no âmbito da psicologia social, trata-se de uma expressão em que existe uma discordância entre sexo anatômico e gênero. Quando a pessoa nasce, ela é designada homem ou mulher com base no genital. Mas, ao longo da vida, ela apresenta outro modo de existir. Por isso está no campo da subjetividade, no sentido de que elas são coletivas.
A pessoa se entender em um ouro gênero é algo que vem da mente?
Não diria que é algo da mente porque dá a ideia de racional: eu penso, eu sou. É mais complexo. São três conceitos básicos: o sexo anatômico: a genitália; a orientação sexual: quem irá proporcionar prazer para aquela pessoa; e a expressão de gênero: e nela há uma série de possibilidades, pois é como a pessoa se apresenta e se situa no mundo, tanto no campo feminino, quanto masculino.
O sexo anatômico, a orientação sexual e a expressão de gênero não estão ligados?
Não. E essa é a proposta dos estudos de gênero no Brasil, especificamente dos pós-estruturalistas. Eles promovem justamente essa quebra de uma suposta e falaciosa continuidade: se a pessoa tem um pênis, é homem e se atrai por mulheres. Não existe essa associação direta, mas sim múltiplas possibilidades.
O termo transgênero é muito polêmico, mas em outros países é bastante usado. O que pensa os estudiosos é que essa palavra é como se fosse um guarda-chuva e nele existe inúmeras possibilidades. É como se fosse a visão macro. E as expressões travesti, homem e mulher trans e pessoas binárias – ou seja, que transitam de um para o outro – a visão micro. Tudo isso baseado na autodeclaração, não somos nós que vamos apontar o gênero, mas sim a própria pessoa.
Como é o processo a partir do momento em que a pessoa se identifica em outro gênero e quer mudar seu corpo?
São três etapas: hormonoterapia, psicoterapia e a cirurgia. A questão mais emergencial para as pessoas trans é a aparência. Algumas, por exemplo, ficam satisfeitas apenas com a hormonoterapia, e não há necessidade de alteração do sexo.
Durante a minha pesquisa de doutorado, conversei com algumas pessoas trans que compraram várias cartelas de anticoncepcional, trituraram com várias frutas e tomaram. Essa dose avassaladora de hormônios pode provocar as alterações desejadas, mas da maneira errada. Por isso, o SUS e o Ministério da Saúde, em 2008, resolveram assumir essa discussão.
Então, já existe uma assistência às pessoas trans no SUS?
Sim, mas existir é muito diferente de funcionar. É preciso ser maior de 18 anos, se inscrever no programa e iniciar um acompanhamento com um psicoterapeuta que dura 2 anos. Esse processo se baseia em uma série de entrevistas e testes a fim de legitimar a vontade da pessoa. E aí entra outra discussão: até onde o outro deve validar o que o indivíduo sente que é. Ao mesmo tempo que se trata de um sistema de acesso à população, existem regras rígidas que o trans tem que se adaptar.
Uma outra questão é que a cirurgia é feita apenas em alguns lugares do Brasil: São Paulo, Rio de Janeiro, Goiás, Pernambuco e Rio Grande do Sul, o que dificulta a locomoção. Muitas vezes, a cota está estourada e a fila de espera é grande.
Como funciona a cirurgia?
Para a construção da neovagina – pênis para vagina, é necessário em média 12 procedimentos. E o pós-operatório é muito delicado. Tecnicamente e biologicamente, a construção da neovagina é muito mais avançada e com resultados mais satisfatórios do ponto de vista estético e do prazer. Já a neofaloplastia – vagina para pênis, é mais complexa, tanto que alguns autores a consideram em fase experimental. No entanto, é válido ressaltar que, nem sempre a pessoa trans deseja realizar o procedimento. Por isso, é preciso desvincular o ser homem ou mulher com o órgão genital.
Já existem direitos voltados para a comunidade trans?
A carta dos usuários do sistema de saúde reconheceu a importância do uso do nome social no sistema de saúde. E de 2008 pra cá, uma série de outros órgãos começaram a criar políticas públicas garantindo isso. No ano passado, o até então prefeito de BH, Marcio Lacerda, criou um decreto ampliando o uso do nome. Porém, existe uma distância entre a política pública, texto prescrito e a prática cotidiana. No dia a dia, há inúmeras dificuldades, um exemplo é o conflito gerado quando a pessoa usa um documento com o nome social, mas no sistema ainda está o nome civil. Ela tem que passar pelo constrangimento de explicar que é trans, muitas vezes, na frente de todo mundo.
O que falta para que essa pessoa se sinta inclusa na sociedade?
Ouvi-la. Hoje, se tem um discurso médico, que é de patologização da expressão de gênero. Há também o acadêmico e pedagógico que são normativos. Além do movimento social, que é importante, mas, muitas vezes, fala pela pessoa ao invés de deixar com que ela fale. Um exemplo é o uso do banheiro. Acompanhei uma escola enquanto desenvolvia minha tese e lá tinha uma mulher trans. Eles estavam com dificuldade sobre qual banheiro ela usaria, propus um diálogo e dei a ideia do banheiro para deficientes e ela não viu problema nenhum. Válido ressaltar que, o banheiro para deficientes, é prioritário apenas quando há algum deficiente no local, oferecê-lo a uma pessoa trans não é reiterar o preconceito como muitos pensam.
Qual poderia ser a solução para que as outras pessoas passem a entender e a respeitar?
A maior dificuldade está na aceitação da sociedade. O assunto está na mídia, redes sociais, artes, educação, política e é essencial essa visibilidade. O Brasil é um país homofóbico e transfóbico. Hoje, no mundo, é o que mais mata pessoas desse grupo.
É preciso discutir o assunto nas escolas e tirá-lo dos guetos, lugares fechados e promover a circulação do conhecimento e das informações. Muitos eventos promovidos não atingem o grande público, e acaba sendo os interessados falando para os interessados.
Outro ponto é a inserção da pessoa trans no mercado de trabalho. Houve um tempo em que todo mundo entendia a pessoa trans como prostituto, cabeleireiro ou um profissional de moda. Não que haja algo errado com essas profissões. Mas, isso já é algo mais amplo. Existem trans doutores, professores universitários etc. Isso ajuda a quebrar, mesmo que aos poucos, esse tabu.
Dado alarmante: existem apenas 11 ambulatórios especializados para as 752 mil pessoas trans no mundo.