As discussões sobre o direito das mulheres ao aborto voltaram à tona nos últimos dias no Brasil. Isso aconteceu depois que um caso de gestação resultante de estupro de uma menina de apenas 11 anos, em Santa Catarina, veio a público. A juíza à frente da ocorrência induziu a criança a continuar com a gravidez e a colocou em um abrigo. Somente após repercussão nacional o procedimento foi realizado.
Os números sobre o assunto são defasados ou conflitantes, ainda mais que muitos episódios são subnotificados. No entanto, os dados mais recentes do Ministério da Saúde são de 2018 e apontavam que 1 milhão de abortos induzidos ocorrem todos os anos.
De acordo com a Rede Médica pelo Direito de Decidir, a estimativa é que 500 mil procedimentos clandestinos são realizados anualmente. Sobre o tema, o Edição do Brasil conversou com Júlio César Lima, advogado, especialista em violência contra a mulher.
Como é o processo no caso de uma mulher desejar abortar alegando que sofreu crime sexual?
Desde já, vale esclarecer que a mulher não tem a obrigação de realizar denúncia ou fazer um boletim de ocorrência policial, justamente para não acontecer a revitimização. A decisão de interromper a gravidez decorrente de estupro é da mulher, não sendo necessária a comprovação da violência para a realização do procedimento.
Assim, ao buscar atendimento, deverá ser amparada por uma equipe multidisciplinar a fim de lhe dar toda a assistência. No entanto, para que se prossiga com a interrupção deverão ser observados os procedimentos de justificação e autorização da interrupção legal da gravidez no Sistema Único de Saúde (SUS).
Em linhas gerais, tal procedimento consiste no termo de relato circunstanciado (descrição sobre os fatos realizado pela vítima); parecer técnico (um médico ginecologista atesta que o tempo de gestação é compatível com o relato da vítima); aprovação de método de interrupção da gravidez pela equipe multidisciplinar; termo de responsabilidade (a vítima se responsabiliza por informações inverídicas) e Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (a vítima é esclarecida sobre o processo e eventuais consequências).
Com qual idade a mulher pode decidir sozinha pela interrupção da gravidez?
Uma vez manifestada a vontade da vítima de violência sexual, independente da idade, deverá ser realizado o procedimento, embora na prática existam muitas resistências sobre tal possibilidade. No entanto, por óbvio, precisará ser acompanhada pelos pais, caso não tenha completado 18 anos.
Ademais, vale lembrar que, nos casos de vítimas menores de idade, a violência é presumida, considerada estupro de vulnerável. O Código Penal Brasileiro não estabelece prazo nem qualquer outro requisito para a interrupção da gravidez nos casos previstos em lei. Qualquer outra interpretação é ilegal e contrária ao direito.
Em quais situações o aborto é permitido no Brasil?
Quando há risco para a mãe, em casos de bebês anencéfalos e nos episódios de gravidez decorrente de estupro. Nas duas primeiras ocorrências, é necessário a realização de um laudo médico.
Qual é a pena para mulheres que o fazem fora destes casos? O crime de aborto provocado pela gestante (artigo 124, 1ª parte do Código Penal Brasileiro) tem como pena de 3 a 6 anos de reclusão.
O que falta para o aborto ser legalizado no país?
Falta uma discussão ampla e desprovida de uma agenda política conservadora e de dogmas religiosos. O debate deveria girar em torno dos Direitos Humanos das Mulheres, reconhecidos em Tratados Internacionais, e do seu valor para o ordenamento jurídico. Além do devido respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana e a autonomia da vontade da mulher, também protegidos pela Carta Constitucional do Estado Brasileiro.
Se a prática fosse legalizada, poderia reduzir as ocorrências de procedimentos clandestinos?
Os países que já autorizaram a interrupção da gravidez reduziram significativamente o aborto clandestino e suas consequências, justamente porque o fizeram com o objetivo de permitir acesso integral ao procedimento para garantir os direitos à saúde da mulher de forma ampla, inclusive com apoio psicológico.
Na sua opinião, o assunto deveria ser tratado como direito humano e questão de saúde pública?
Sim, deveria. O aborto clandestino é questão de saúde pública, uma vez que coloca em risco a integridade física e psicológica das mulheres. Vale lembrar que os Tratados Internacionais de Direitos Humanos protegem os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, assim como à dignidade, à vida, à autonomia, à saúde, à educação, à integridade, não discriminação e uma vida livre de violência, todos também reconhecidos como fundamentais pela Constituição Federal.
Para que a interrupção da gravidez seja permitida no Brasil, é necessário levar em consideração o chamado Bloco de Constitucionalidade e um efetivo Controle de Convencionalidade dos Direitos Humanos, constantes nos artigos 4º, II e 5º, § 2º e §3º, todos da Constituição Federal.