Desde que o documentário “Dilema das Redes” foi lançado, a dimensão sobre a ascensão das redes sociais nas nossas vidas ficou mais didática. A obra entrevista especialistas de diversas áreas e ex-funcionários de gigantes da tecnologia, como Google e Facebook. Entre as questões levantadas está o controle do número de horas que uma criança ou adolescente usa a internet e as redes sociais, a falta de supervisão, a autoestima e a forma como os jovens lidam com eventuais frustrações num mundo de superexposição. As perspectivas apresentadas assustam. Sobre como e por que devemos ter um olhar atento à proteção de crianças no universo on-line, o Edição do Brasil conversou com Isabella Henriques, diretora executiva do Instituto Alana, organização que promove o direito e o desenvolvimento integral da criança.
Quais são as principais preocupações em relação ao uso exacerbado das redes sociais por crianças e adolescentes?
Estamos atentos, especialmente, para os desafios que envolvem os rastros digitais, a economia da atenção, o design persuasivo das plataformas, a manipulação comportamental, a coleta e o tratamento indiscriminados de dados pessoais e, por consequência, a exploração comercial infantil. Em uma sociedade pautada pela vigilância ubíqua, em que há uma verdadeira “datificação” da vida das pessoas, na medida em que todos os nossos comportamentos e informações são registrados e utilizados para finalidades comerciais, torna-se cada vez mais difícil, para crianças e adolescentes, gozarem desse período de vida com a liberdade desejável e com seus direitos devidamente assegurados. Nesse sentido, em um dos seus últimos livros, Bauman disse que hoje cada um de nós é um hyperlink humano. Crianças e adolescentes passaram a ser o próprio produto. Seus dados pessoais, que dizem respeito à sua própria personalidade, estão sendo massivamente coletados, utilizados e comercializados mesmo antes de seu nascimento. E, o que é pior, estão sendo usados também para fins de manipulação comportamental decorrente do direcionamento de anúncios publicitários segmentados, mesmo para crianças com menos de 12 anos, o que já é expressamente proibido no país.
As fake news são um grave problema na internet. Quando falamos de pessoas em formação, o quanto elas podem ser prejudiciais?
A desinformação na internet é um tema de máxima relevância para todas as pessoas, indistintamente. Sem dúvida que, para crianças e adolescentes, é ainda mais sensível porquanto estão vivenciando um peculiar estágio de evolução e um período de muitos aprendizados. Nesse sentido, um dos temores é que o Brasil não consiga promover o direito à devida educação para as mídias, tão imprescindível para o desenvolvimento de habilidades necessárias a uma plena cidadania digital.
Em termos de legislação, quais medidas seriam necessárias para proteger crianças e adolescentes nas redes sociais?
A legislação brasileira já proíbe o direcionamento de publicidade a crianças com menos de 12 anos, independentemente do tipo de produto ou serviço anunciado ou do meio utilizado para tanto. Isso significa que também na internet não é permitido direcionar mensagens comerciais a pessoas de até essa faixa etária. No que diz respeito aos adolescentes, a análise da abusividade deve ser feita caso a caso. Sobre publicidade comportamental, realizada com base na coleta e tratamento de dados pessoais, entendemos que a abusividade é presumida, diante da maior vulnerabilidade do adolescente e do fato de que tal prática não está em consonância com o seu melhor interesse. A utilização de dados pessoais de crianças e adolescentes para fins de publicidade comportamental deve ser totalmente repudiada. Dessa forma, acredito serem necessárias medidas que tragam mais eficácia às leis existentes, com uma maior fiscalização e a devida aplicação das penalidades legalmente previstas.
O que é considerado um uso saudável da internet e acesso às redes por crianças e adolescentes?
A internet pode ser um território de muitas oportunidades, capaz de promover a criatividade, a socialização, o aprendizado, a interatividade, a brincadeira e novas descobertas. O uso saudável não tem, necessariamente, relação com o tempo on-line, mas com a qualidade da navegação. Ainda que, sem dúvidas, a duração seja um dado importante a ser observado, de acordo com a realidade de cada criança ou adolescente, do contexto social e familiar. Por exemplo, durante a pandemia, com o fechamento das escolas, grande parte delas teve as horas on-line aumentadas para as atividades escolares. Apesar disso não ser o ideal, faz parte da realidade que se impôs com a necessidade de isolamento físico. O essencial é que as descobertas e a navegação sejam acompanhadas por responsáveis. Que o menor não esteja usando a internet completamente sozinho e sem qualquer orientação ou mediação. Também é importante que seja preservado o direito das crianças e dos adolescentes desconectarem-se. Nesse sentido, experiências ao ar livre, na natureza e com encontros presenciais são fundamentais para o desenvolvimento infantojuvenil.
Em relação ao vício de crianças e adolescentes em celulares e redes sociais, quais são os conselhos para os pais lidarem com o problema?
Vale um convite às famílias, mães, pais e responsáveis, para que façam uma revisão de seus próprios hábitos digitais, que influenciam diretamente os dos filhos. Além de leis que garantam o melhor interesse de crianças e adolescentes no ambiente digital, é imprescindível que produtos e serviços sejam desenvolvidos de forma a contemplar os seus direitos. Por exemplo, restrições de quantidade de tempo de tela podem ser implementadas pelas famílias por mecanismos de design, enquanto estratégias de design persuasivo para o uso constante dos produtos e serviços não devem ser usadas em relação a crianças e adolescentes. Outro exemplo de recomendações às empresas diz respeito às configurações padrão, que devem ser de alta privacidade, com limitação de coleta de dados biométricos, geolocalização e hiperexposição.