O Tribunal Penal Internacional de Haia (TPI) começou a analisar denúncias contra o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, por delitos, supostamente cometidos, durante a pandemia de coronavírus. A Corte sediada em Haia, na Holanda, julga graves violações de direitos humanos, como genocídio, crimes contra a humanidade e de guerra. O Edição do Brasil conversou com Vladimir Feijó, advogado e professor de direito internacional, para entender qual o peso de ser denunciado em um tribunal no exterior.
O que é o Tribunal Penal Internacional de Haia?
É o primeiro TPI permanente e faz parte do progressivo compromisso dos povos e países de proteção à vida humana em seus diferentes aspectos. Uma das linhas do direito internacional é o chamado direito humanitário, que começou a existir para proteger as pessoas que não participaram ou que deixaram de participar de hostilidades e também para restringir os meios e os métodos usados em combate militar. Mesmo antes da criação destes órgãos julgadores já havia pressão crescente no sentido de não deixarem passar impunes a violências praticadas contra a humanidade.
Qual é o peso de ser julgado por essa Corte?
Estar sob investigação de fóruns internacionais, quaisquer que sejam, significa que os olhos do mundo estão atentos ao que ocorre dentro do nosso país. Além disso, que há suspeitas que as instituições internas não são suficientes para assegurar os parâmetros de comportamento esperados dos governantes, os níveis de vida e dignidade desejados a todas as pessoas. Pelo mundo inteiro, violações ocorrem, porém, quando a Corte de Haia passa a discutir um caso é porque já há pressão para que seja considerada uma situação grave que pode vir a justificar, no futuro, uma intervenção.
Quais foram os casos já julgados em Haia?
O TPI recebe algumas críticas quanto a sua efetividade. A opinião geral é que ele seria incompetente, parcialmente, porque desde sua entrada em vigor conduziu apenas 4 processos que levaram os acusados à condenação. Foram os casos de Al Mahdi, condenado por associação a Al Qaeda na prática de crime de guerra, pelos ataques intencionais contra religiosos e edificações históricas em Timbuktu; Bemba, condenado por ofensas contra a administração da justiça e corrupção durante os julgamentos dos crimes no Congo; Katanga, condenado por crimes contra a humanidade, em ataques à vila de Borgoro, no Congo; e Lubanga, condenado por crimes de guerra pela conscrição e uso de menores de 15 anos para o combate no Congo. Outros 3 casos já foram encerrados e tiveram como resultado final a absolvição dos acusados, 7 foram concluídos por falta de provas contundentes, mas podem ser reabertos caso novas evidências sejam levantadas.
Quais acusações pesam sobre Bolsonaro?
Tenho conhecimento de quatro. Em três delas são descritos crimes contra a humanidade e uma quarta descreve fatos de crime de genocídio. O papel do presidente Bolsonaro frente à pandemia é foco das três primeiras, enquanto o descaso e efetivo desmanche das políticas públicas de proteção dos povos indígenas e do meio ambiente fundamentam os crimes de genocídio.
Qual é o risco enfrentado por Bolsonaro no Tribunal de Haia?
Pelo histórico da Corte, diria que o risco é baixo. Entretanto, nunca se sabe quando os ventos da história podem mudar. Particularmente, acredito que o TPI está apenas aguardando uma boa oportunidade para reduzir a pecha de julgador apenas de africanos. Figuras importantes vinculadas ao Tribunal disseram que não acreditam que a ação terá sucesso. É o caso do primeiro promotor da Corte, o argentino Luís Moreno Ocampo, e da brasileira Sylvia Steiner, que foi juíza do TPI. Porém, ambos não foram incisivos em dizer que é impossível o julgamento. Pelo contrário, enfatizaram que é questão de levantar provas suficientes.
Não caberia denunciar ao Superior Tribunal Federal (STF)?
Sobre a discussão se o caso não deveria ter sido apresentado ao procurador-geral da República, Antônio Aras, para julgamento perante o STF, os querelantes devem manifestar provas de inação, má vontade ou suspeição do atual procurador. Suspeitas não faltam de seu alinhamento ao presidente. Voltamos a ouvir a expressão “engavetador-geral da República”, já que queixas contra aliados e familiares de Bolsonaro são abandonadas pelo Ministério Público Federal. Há, inclusive, forte dissidência interna no órgão. Por outro lado, temos também o princípio da inerência, o TPI não depende da autorização dos Estados para iniciar um julgamento. Para os crimes de genocídio, a Corte tem competência de ofício, ou seja, o único requisito para o Tribunal possuir a devida competência para julgamento é de que o Estado, em que ocorreu o crime ou onde foi detido o suposto culpado, tenha aderido ao Estatuto de Roma, do qual o Brasil internalizou desde 2002.
Como funciona o processo de investigação e julgamento do TPI?
Antes das investigações em si há outra fase, a de exames preliminares. No caso de Bolsonaro, a situação encontra-se neste estágio. O Gabinete do Promotor deve determinar se há evidência suficiente de crimes de gravidade dentro da jurisdição do Tribunal, identificar ainda se há processos nacionais genuínos e se a abertura de uma investigação serviria aos interesses da justiça e das vítimas. Após isso, poderão ser colhidas evidências e identificação dos suspeitos para que sejam solicitados pedidos de prisão ou convocação para comparecer voluntariamente ao Tribunal. Sem a presença física do acusado, a Corte de Haia não pode conduzir seus trabalhos, ou seja, não existe processo à revelia. O Tribunal é composto por 18 juízes, para garantir a isenção do julgamento e também o duplo grau de jurisdição. Três juízes são sorteados para participar do pré-julgamento, outros três são sorteados para a audiência em si e outros cinco são preventivamente sorteados caso haja recurso contra a sentença proferida. Ao final da investigação, os três magistrados decidem se há provas suficientes para o caso ir a julgamento. Neste estágio, os outros três juízes conduzem os trabalhos em fases escrita e oral para, ao final do contraditório e ampla defesa, se pronunciarem sobre existir evidências suficientes para provar, além de qualquer dúvida razoável, que o acusado é culpado da acusação recebida. É deles a competência para proferir a sentença e determinar reparação às vítimas.
Em caso de condenação, quais são as punições possíveis?
O Estatuto de Roma prevê penas de privação de liberdade ao máximo de 30 anos pelo somatório de condenações, de multa e de perda de produtos, bens e haveres provenientes, direta ou indiretamente, do crime. Neste último caso, isto inclui a indenização às vítimas ou seus parentes.
Independente de Bolsonaro ser julgado ou condenado, qual é o peso, diante da comunidade internacional, de ter um presidente denunciado ao TPI?
É um claro sinal de dúvida quanto à manutenção dos compromissos internacionais firmados. Paira sobre o seu governo o vício moral de insegurança jurídica. Com isso, o processo diplomático e os custos político e econômico de aprovação de qualquer acordo internacional de longo prazo são elevados, quando não simplesmente adiados ou abandonados. Estar no rol de perpetradores de crimes de competência do TPI é quase que uma comprovação de que se encabeça um regime que não respeita o Estado de Direito, o devido processo e a democracia material.