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“Cultura do cancelamento é tóxica para a saúde mental”

Especialista diz que existem formas menos agressivas de sinalizar ao outro que alguma fala ou atitude que ele teve não agradou | Foto: Divulgação

Você já ouviu a expressão que alguém foi cancelado na internet? Acontece com frequência entre celebridades ou personalidades públicas e traz consequências como queda no número de seguidores, perda de patrocínios, perseguição e uma coleção de palavras mal-educadas nas redes sociais. De acordo com pesquisa do Instituto Liberdade Digital, 33% dos entrevistados acham certo que as pessoas cancelem quem emite opiniões discordantes, enquanto 33% consideram errado.

O fato é que o movimento vem ganhando força nos últimos anos, especialmente no que diz respeito a questões como racismo, LGBTfobia, machismo e outros. Para esclarecer sobre esse assunto, o Edição do Brasil conversou com Camila da Silva, psicóloga e especialista em Terapia Cognitivo Comportamental (TCC).

Como surgiu a cultura do cancelamento?
O termo apareceu em 2017, com a repercussão do movimento MeToo. Popularizado na forma de uma hashtag nas redes sociais com denúncias de assédio sexual em Hollywood, logo se tornou uma maneira de divulgar abusos sofridos por mulheres no mundo todo. O cancelamento tal qual é praticado hoje começou a se popularizar em 2019. As redes sociais tiveram um importante papel nesse meio, uma vez que o conteúdo publicado pode viralizar e alcançar rapidamente um grande número de pessoas. Muitos se acham verdadeiros juízes e se tornam especialistas nos mais diversos assuntos. Na prática, cancelar alguém ou até mesmo uma empresa é uma forma de justiça social, no qual um indivíduo é excluído de uma posição de influência por ter falado ou cometido algum erro perante o que a sociedade considera como inadequado.

É uma forma de apontar erros e é comum acontecer entre artistas, influenciadores digitais, atletas, entre outras personalidades públicas. As pessoas param de segui-las e deixam de acessar seus conteúdos on-line. Mas se engana quem pensa que apenas celebridades podem ser canceladas. Os anônimos também sofrem com isso quando fazem ou dizem algo controverso. Os amigos ou até mesmo familiares se afastam e deixam de manter contato.

Quais os principais motivos que levam a isso?
Existem diversas razões que podem fazer com que alguém se torne assunto na internet e seja cancelado. Mas os principais são racismo, preconceito com classes sociais, xenofobia, machismo e LGBTfobia. Também pode acontecer por motivos banais, como falar mal de um famoso ou fazer algo que a população desaprova. A pessoa recebe uma enxurrada de comentários negativos e não adianta se defender e nem pedir desculpa, pois os canceladores já fizeram seu julgamento e o baniram.

Quais as consequências na vida de quem é cancelado?
Têm aquelas já conhecidas e visíveis a todos, como milhões de seguidores a menos em apenas um dia, cancelamento de apresentações e perda de patrocínios, assim como a rede social da pessoa ser invadida por comentários negativos. Mas as consequências vão muito além disso e podem afetar a saúde mental do indivíduo, inclusive, deixando marcas pelo resto da vida. Dificilmente terão uma rotina normal depois de um episódio de cancelamento.

O fato também pode desencadear abandono, desprezo, desconsideração e esquecimento, entre outros distúrbios como ansiedade e até depressão. A cultura do cancelamento é tóxica para a saúde mental. Nesses casos é preciso buscar ajuda de um profissional para fazer um acompanhamento e iniciar o melhor tratamento. O cidadão pode até reconhecer que errou, mas sempre terá que se policiar em relação às suas atitudes. O recomendado é que se dê um tempo da rede social.

Também pode impulsionar uma incansável busca por uma perfeição inexistente que impede a pessoa de aceitar seus defeitos, afinal, ninguém quer ser cancelado ou restringido. Isso faz com que ela comece uma luta interna em que tenta, não consegue e se frustra diante dos conflitos que a vida nos apresenta.

O cancelador se considera superior?
De certa forma sim, como se ele mesmo não cometesse nenhum erro na vida ou somente a opinião dele importasse. Normalmente, os canceladores de plantão são pessoas críticas e intolerantes. Nesse meio também existem os famosos haters, que se infiltram justamente para provocar e causar situações polêmicas, alcançando milhares de pessoas e se favorecendo diante de algo negativo.

Lógico que não devemos achar normal ou que está tudo bem quando alguém faz uma publicação que tenha cunho preconceituoso ou que possa prejudicar um indivíduo. Para essas questões cabe à Justiça resolver e não o “tribunal da internet”. A discussão jurídica nas mídias sociais ainda é muito recente.

Como seria possível acabar com essa cultura? Você acredita que falta mais diálogo entre as pessoas?
Acredito que existem formas menos agressivas de sinalizar ao outro que alguma fala ou atitude que ele teve não agradou. Um bom diálogo é sempre a melhor opção, mas é importante não apontar dedos ou julgar suas ações precipitadamente. Isso é muito difícil hoje em dia e a internet não perdoa nada, bastando um pequeno deslize para ser cancelado. Tem muito a ver com a intolerância e a incapacidade de lidar com o diverso e de ser confrontado. O problema é que a cultura do cancelamento não só cancela a atitude, como também o cidadão.

Muitas vezes, alguém é cancelado por algo do passado, mesmo que tenha refletido sobre a situação e pedido desculpa. Isso é um grande erro, visto que as pessoas mudam com o tempo e coisas que realizaram no passado já não fariam hoje. É necessário dar espaço para que amadureçam e isso demanda tempo. Em algumas ocasiões, acabamos impedindo o outro de se desenvolver.