A Venezuela está passando por um crise que parece não ter fim. Para se ter uma ideia, segundo dados da Assembleia Nacional, instituição controlada pela oposição ao governo de Nicolás Maduro, a inflação chegou a 1,3 milhão% no último ano.
Para entender melhor o que está acontecendo naquele país, o Edição do Brasil conversou com Márcia Medeiros. Ela é economista formada pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), especialista em Gestão de Negócios e Empreendedorismo, em Gestão de IES pela UNESA e mestre em Economia Aplicada pela Universidade Federal de Viçosa (UFV). Além disso, Márcia atualmente é a reitora do Centro Universitário Estácio de Belo Horizonte.
Qual é o principal problema da Venezuela: a crise política ou a financeira?
Ao longo da história dos países observamos, repetitivamente, que uma boa economia garante que haja continuidade política de seus governantes, por mais que existam insatisfação e conflitos políticos. O que ocorreu com a Venezuela é que enquanto a situação econômica caminhava bem (o preço do petróleo estava bom), a situação política se sustentava. Com o agravamento da crise financeira, por conta da queda do preço do barril do petróleo (o país é totalmente dependente da venda desse commodity para adquirir demais bens de consumo para a população), a desaceleração da economia chinesa e a busca por outras formas alternativas de energia, instalou-se um crise geral, tanto na política quanto na econômica.
De que maneira a crise financeira está afetando o dia a dia da população local?
Segundo a Pesquisa sobre Condições de Vida na Venezuela (ENCOVI), realizada pelas principais universidades de lá, o percentual de pessoas em situação de pobreza no país, em 2018, foi de 48%, sendo que no ano anterior era de 46%. Esse estudo também informa sobre o abastecimento de água e eletricidade. Sobre a primeira questão, em 2018, a situação piorou ainda mais, o índice saiu de 45% para 28%. Ainda há a falta abastecimento de alimentos, uma hiperinflação e a população está desesperada.
Como a Venezuela chegou a esse ponto de crise financeira, sendo que é um dos países que mais tem petróleo?
O país é um dos maiores produtores de petróleo do mundo, sendo esse seu principal produto de exportação (corresponde a 90%). No entanto, ele ficou extremamente dependente dessa fonte de recurso, ao invés de promover o desenvolvimento industrial e agrícola do país.
Além das seguidas quedas no preço do barril desde 2014, a Venezuela também vem reduzindo a extração de petróleo, por conta da má administração da PDVSA (Petróleos da Venezuela), a petrolífera com uma das maiores reservas do mundo. Não houve investimentos em infraestrutura e há muita corrupção e lavagem de dinheiro, sendo que vários diretores estão sendo presos desde 2017. Como afirmamos na economia: se não há renda, não existe emprego, se não há emprego, não tem salário, se não há dinheiro, não existe consumo e, portanto, não há produção. A roda econômica para.
Como você define os perfis dos dois últimos presidentes venezuelanos?
Hugo Chávez morreu em 2013, após ficar 14 anos no poder marcado por um forte militarismo, liderando a chamada revolução bolivarianista e disseminando o ‘socialismo do século XXI’ na Venezuela, com grande intervenção do Estado e do poder militar, além de críticas ao neoliberalismo socioeconômico, assim como à condução da política externa dos Estados Unidos. Ele primou por defender e utilizar-se de programas sociais para subsidiar alimentos e medicação para a população e incentivar a integração latino-americana por meio de trocas bilaterais e acordos de ajuda mútua.
Nicolás Maduro, que era o vice e do mesmo partido criado por Chávez (PSUV), assumiu a presidência de forma interina, sendo eleito em seguida para um mandato de 6 anos a partir de 2013. Já assumiu o país em crise econômica, por conta da queda no preço do petróleo em 2014. O Produto Interno Bruto (PIB) caiu em torno de 37% entre 2013 a 2017. Além disso, Maduro foi reeleito em 2018, porém com muita denúncia de fraude nas eleições e compra de votos.
O que significa Juan Guaidó ter se autoproclamado presidente da Venezuela?
Juan Guaidó até 2018 era um deputado da Assembleia Nacional e após assumir a presidência dessa instituição, em 23 de janeiro, se autoproclamou presidente e foi reconhecido como tal por alguns países como Brasil, Estados Unidos e pela Organização dos Estados Americanos, o último órgão estatal sob controle da oposição ao governo de Maduro. Ele ganhou visibilidade nacional e internacional por considerar tal governo como ilegítimo. Essa ação de Guaidó, legitimamente, não tem efeito, mas tem um caráter simbólico, servindo como uma jogada política para pressionar por uma transição.
A mudança no governo pode melhorar a situação naquele país?
Independente do governo há necessidade de ações urgentes para atendimento à população que, hoje, vive na miséria e sem perspectivas de melhoria. Se o atual ou o próximo governo não fizerem nada, a situação do país continuará se deteriorando a cada dia.
De que modo a crise na Venezuela pode afetar a América do Sul?
Visivelmente há aumento no fluxo de imigrantes nos países vizinhos, o que repercute na assistência dos países para atendê-los. Segundo relatório da Organização Internacional para Migrações (OIM) – Agência das Nações Unidas para Migrações – em julho de 2018, o Brasil tinha recebido 50 mil venezuelanos. O Peru, que sequer tem fronteira com a Venezuela, recebeu 354 mil; o Chile, que é ainda mais distante geograficamente, abrigou 105,7 mil, e a Argentina, 95 mil. Na Colômbia chegaram 870 mil venezuelanos até abril de 2018 e os Estados Unidos e Espanha concentram 68% dos imigrantes venezuelanos, segundo o relatório.
E como isso atinge o Brasil?
Por dia, estamos recebendo uma média de 370 venezuelanos pedindo refúgio ou residência temporária, dos quais 15 a 20 são totalmente desassistidos e precisam de abrigo, dando um total de 450 a 600 pessoas que precisam de moradia por mês. Em Roraima, Estado que faz divisa com o país, já existem 13 abrigos onde hoje estão 6,5 mil venezuelanos, sendo que o maior comporta pouco mais de mil pessoas. Se houver uma piora na situação da Venezuela e, consequentemente, um aumento no fluxo de imigrantes, o Brasil terá que se preparar para novos abrigos e condições financeiras para custear a estada dessa população.