De 4 em 4 anos, o mundo volta suas atenções para os megaeventos esportivos, como as Olímpiadas e a Copa do Mundo, que surpreendem tanto nos espetáculos quanto nos escândalos de corrupção. A Rússia, sede da Copa em 2018, chocou o mundo, em 2014, com um esquema cinematográfico de fraude a exames antidoping de atletas comandado pela própria Rusada, agência russa de combate ao doping, tudo com a chancela do governo. “A corrupção e os desvios no esporte são, acima de tudo, estruturais. Entidades são criadas sem controles externos, sem a necessidade de prestar esclarecimento e com o poder de ter nas mãos um dos maiores produtos de entretenimento do mundo”, é o que diz Jamil Chade, correspondente internacional do jornal O Estado de São Paulo há 18 anos e autor do livro “Política, Propina e Futebol”, que detalha o antro de corrupção na Federação Internacional de Futebol (Fifa).
Ele acrescenta que se trata de um meio de clientelismo. “Favores políticos são feitos e pagos em votações que deveriam ter como único argumento o esporte. Isso, somado ao fato de não se ter limites de mandatos em várias entidades, contribui para um amplo sistema de impunidade”.
A terra de Vladimir Putin, presidente da Rússia e ex-agente da KGB (agência de serviço secreto soviético), investiu pesado para sediar grandes eventos esportivos. E, competindo em casa ou fora, os atletas sempre se mostraram imbatíveis. Seja nas Olímpiadas, no Mundial de Atletismo, nos Jogos de Inverno ou por todo o histórico do país, russos liderando quadro de medalhas não causava estranhamento. Mas, há 4 anos, o prestígio de uma das maiores potências do esporte foi colocado em xeque.
O documentário, da TV alemã ARD, “The secrets of Doping: How Russia makes its winners” (Os segredos do doping: como a Rússia fabrica seus campeões) mostrou a existência de uma rede de corrupção milionária formada por atletas, dirigentes e cientistas para fraudar o resultado de exames antidoping.
O laboratório de antidopagem de Moscou já havia sido alvo de denúncias antes, mas a reputação do pesquisador que o comandava, Grigory Rodchenkov, sempre salvou a instituição de investigações mais profundas.
Na época, Grigory negou veementemente as acusações. Já em 2017, revelou tudo para o documentarista Bryan Fogel em “Ícaro”. O documentário da Netflix, que ganhou o Oscar em 2018, mostra Grigory como tutor de Bryan no plano de recorrer ao doping para impulsionar resultados no ciclismo e, principalmente, mostrar como é possível escapar dos resultados positivos. Tão chocante quanto soa: o cientista que deveria garantir um esporte mais limpo mostrou, diante das câmeras, como ganhar competições com atletas dopados.
Solução política
Depois de estabelecer duas comissões disciplinares em julho de 2016, o Comitê Olímpico Internacional (COI) anunciou uma série de decisões, em dezembro de 2017, criticadas como brandas.
“Após 17 meses de trabalho extenso, a Comissão Schmid confirmou a manipulação sistêmica das regras e do sistema antidoping na Rússia, por meio da ‘Metodologia dos positivos que desaparecem’ durante os Jogos Olímpicos de Inverno de Sochi 2014, bem como os vários níveis administrativos, legais e de responsabilidade contratual, decorrente do descumprimento das respectivas obrigações das diversas entidades envolvidas. Depois de discutir e aprovar o Relatório Schmid, o Conselho Executivo do COI, dentre outras decisões, suspendeu o Comitê Olímpico Russo (ROC)”, informou o COI em resposta a reportagem.
A investigação durou mais tempo que a punição. Em fevereiro deste ano, o chefe do ROC, Alexander Zhukov afirmou que o COI havia retirado a suspensão da Rússia. Para Chade, a solução foi política. “O COI basicamente encontrou uma solução para não abrir uma crise com Putin e, de uma forma hipócrita, permitiu que atletas competissem. Houve um doping de estado e o que vimos foi um esforço global para salvaguardar os interesses econômicos e políticos”.
Chade afirma que, para limpar o esporte, pouco foi feito. “Por mais que o escândalo tenha chacoalhado o mundo olímpico, ouso dizer que o doping venceu e que as medidas tomadas não foram suficientes para evitar que, no futuro, outro grande país siga a mesma linha”, critica.
Falta exemplo
As formas de corrupção não se limitam a gestão. “Quando Messi foi depor num tribunal da Espanha por evasão fiscal, foi aplaudido na entrada. Um herói que faz gols e não cumpre sua função social de distribuir renda – como todos os cidadãos – não entendeu que sua missão não é apenas a de colocar um sorriso no rosto de uma criança. É de um cinismo imenso ver craques disputando jogos beneficentes para arrecadar dinheiro para causas sociais. O melhor sistema de distribuição de renda e de solidariedade continua sendo o pagamento justo de impostos”, avalia Chade.
Para o professor do Departamento de Educação Física e Humanidades da Faculdade de Educação Física da UNICAMP Sérgio Settani Giglio é preciso revitalizar o meio esportivo. “Seria importante questionar e debater um modelo de esporte interessante para grande parte da comunidade esportiva mundial. Será que os modelos de megaeventos realmente são necessários? Por experiência própria, podemos afirmar que os megaeventos que passaram por aqui deixaram como grande legado a remoção de muitas famílias de suas casas, de pouco acesso ao evento para grande parte das pessoas e de um esquema de corrupção na construção das arenas esportivas”, finaliza.
Os maiores prejudicados? Para Chade, cidadãos e atletas. “Dinheiro que poderia estar sendo distribuído para comunidades e categorias de base acabam em contas secretas. Quem se apoderou do esporte para promover um enriquecimento pessoal ignora o poder social que o esporte pode ter em uma nação. Portanto, a corrupção no esporte não é apenas um problema para os atletas, mas para a cidadania”.
Para o bem ou para o mal. Esporte, poder e política sempre se misturaram. Com o apelo da paixão alheia e os ares de informalidade, o que talvez tenha demorado foi a percepção do tamanho desse poder.