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Invisibilidade é uma realidade em profissões consideradas menores

Garis, lixeiros, faxineiros, porteiros etc. Sabe o que essas profissões têm em comum? Todas são tratadas como inferiores em nossa sociedade. O resultado disso: as pessoas se tornam invisíveis ao exercer a função. Foi o que constatou a advogada e professora Camila Miranda em pesquisa desenvolvida para seu programa de mestrado.

Camila ficou um mês trabalhando com um grupo de mulheres garis nas ruas de Governador Valadares, município onde morou a vida toda. “Cumpri turnos de manhã, tarde, noite e madrugada. Varri em bairros distintos e de diferentes classes sociais. Depois fiquei um mês conversando com todas elas para saber sobre o cotidiano de cada uma, suas vivências e como se dá a relação com os moradores da cidade”.

Ela relata que a experiência mudou sua vida. “Eu conheço muita gente em Valadares, principalmente por ser professora e advogada, duas categorias em que temos contato com pessoas o tempo todo. Porém, uniformizada e varrendo as ruas, eu não fui reconhecida por ninguém. Fui ignorada por colegas de convívio diário. É uma categoria que passa despercebida”.

A advogada acrescenta que observou uma naturalização dessas situações por parte dessas mulheres. “Elas sofrem xingamento e descriminalização de gênero. Homens passam e fazem gestos obscenos. As pessoas jogam lixo onde elas acabaram de varrer. Algumas, às vezes, ficam chateadas, mas outras nem se importam, entendem como parte do serviço”.

É o que sente na pele a gari Rita Mattos. “As pessoas tem nojo da gente. Acham que porque somos gari, somos sujos, temos alguma doença. A sociedade precisa entender que nosso trabalho é digno e necessário. Se não fosse a gente cuidando das ruas, o que seria das cidades?”.

Para ela, há um grande preconceito acerca da profissão. “Já ouvi muita gente falar ‘nossa, você é tão bonita, por que você é gari? Podia tentar uma profissão melhor’. Já aconteceu situações de eu estar varrendo e a pessoa jogar o lixo na minha frente, como se eu nem estivesse ali. Já me negaram água. Uma vez bati na casa de uma pessoa, ela me deu a água e disse que eu não precisava devolver o copo”.

A realidade da faxineira Flávia Mendes mudou quando ela decidiu trabalhar apenas em casa de família, pois o tratamento recebido é melhor. “Eu fazia a limpeza de algumas empresas e os funcionários nem viam que eu estava ali. Alguns gatos pingados me cumprimentavam e só. Uma vez, um deles tropeçou no balde e derramou toda a água. Lembro perfeitamente do grito que ele deu ‘Você não sabe trabalhar direito’. Como se a culpa tivesse sido minha. Em casa de família isso não acontece”.

Já o coletor de resíduos Daniel da Cruz conta que o preconceito existe, mas não como antigamente. “O ser humano é complicado. Já fui vítima e testemunha de vários tipos de situação que chateia. O pessoal inventa apelidos, chama a gente de lixo. Há um tempo isso era escancarado, hoje, algumas pessoas estão mais conscientes e respeitam nosso trabalho, além de ter um carinho com a categoria”.

Camila também sofreu descriminalização em sua experiência como gari. “O caso que mais me marcou foi de um dono de uma lanchonete que me expulsou da frente de seu estabelecimento em um tom de superioridade. As pessoas pisam nas vassouras, derrubam os carrinhos e chutam o lixo que está sendo varrido”.

O porteiro de uma universidade de BH, Agenor Silva, não espera o preconceito chegar até ele. Carinhosamente conhecido como Dodô pelos funcionários e alunos da instituição, ele diz que trata todos com respeito e que por isso nunca sofreu discriminação. “Sou aposentado e este é meu último emprego. Tenho um carinho enorme pelos alunos e acho que no ambiente universitário isso não acontece com frequência. Mas colegas de profissão que trabalham em outras empresas já se sentiram diminuídos. O preconceito existe e magoa”.

Segundo a psicóloga e especialista em terapia cognitivo comportamental, Ellen Senra, todo esse comportamento é cultural. “Vem da criação e regras sociais. O status diz muito. Se formos a uma cidade pequena ou uma comunidade, as pessoas tendem a tratar esses profissionais com mais respeito. Mas se o nível social é alto, esses profissionais passam despercebidos”.

Ela acrescenta que estamos habituados a essa desatenção. “Vivemos em uma correria. Damos bom dia por educação, para cumprir uma regra e nem esperamos a resposta. Isso faz com que não tenhamos o cuidado de olhar para quem está falando com a gente. Então, muitas vezes, passamos pela pessoa e nem a enxergamos”.

Outro lado da moeda
A pequena Emanuelly Rodrigues, 6, espera ansiosamente pelo caminhão do lixo. “Eles me chamam de amiguinha”, conta. A mãe da criança relata que ela sempre se encantou pela movimentação dos profissionais e que eles a tratam com carinho. “Quando ela fez 3 anos, convidamos toda a equipe para comer bolo e beber refrigerante. Manu ficou tão encantada que nem falava nada. Serviu todos, ganhou um abraço de cada um e depois ficou os encarando com os olhinhos brilhando”, recorda.

Emanuelly acrescenta: “Eles recolhem nosso lixo direitinho e limpam todas as coisas. Eu gosto muito deles. Mas algumas pessoas não gostam e isso me deixa muito triste”.

De acordo com a psicóloga, as crianças ainda não estão habituadas aos preconceitos da sociedade. “Está imposto que a pessoa precisa estudar para conseguir ser um profissional elevado. Depois que crescemos nesse conceito, abandonamos a ideia do herói. Se você perguntar para uma criança o que ela quer ser, ela dirá policial, gari ou bombeiro. Quando crescem um pouco, elas querem ser médicos, advogados, porque começam a visar o dinheiro como sucesso”.

Para a especialista, todos temos que repensar nossas atitudes. “Temos que ser como as crianças: naturais, olhar para o outro e realmente enxergá-lo. É importante nos atentarmos a isso. Termos um pouco mais de calma no dia a dia e lembrarmos que há um indivíduo por trás do profissional”.