Mais de 60 dias após o envio da reforma da Previdência do governo Bolsonaro ao Congresso, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados deu o primeiro sinal verde para a proposta por 48 a 18 votos. Agora a PEC 6/19 segue para análise de uma comissão especial, mas o caminho ainda é longo e cercado de polêmicas. O Edição do Brasil conversou com o economista e consultor econômico Thales Nogueira para esclarecer algumas das principais críticas à proposta.
Após críticas, o governo apresentou dados que embasam a proposta da reforma. Qual a importância da transparência dessas informações?
A apresentação dos impactos fiscais de todas as medidas propostas pela PEC 6/19 é importante para que tenhamos dimensão do quanto cada mudança representa na economia total da reforma. É importante para que o Congresso tenha margem de negociação e saiba quanto cada medida negociada custa. Por exemplo, o Congresso quer alterar o Benefício de Prestação Continuada (BPC), agora eles têm em mãos o impacto fiscal do quanto isso representa. Assim como eles também querem mudar a aposentadoria rural e precisam dos dados. A sociedade precisa pressionar e conhecer todo o conteúdo da reforma e o Congresso precisa de embasamento para fazer as negociações necessárias em favor dela. Os dados não estão tão destrinchados quanto deveriam, mas já são um norte importante para que o debate político no Congresso e no Senado seja mais eficiente e transparente.
Nas propagandas do governo federal sobre a reforma, os principais argumentos são que “é para todos” e que “corta privilégios”. O texto da reforma cumpre essas duas promessas?
A questão dos privilégios é a da alíquota progressiva para os servidores públicos, uma proposta importante para combater a desigualdade. O funcionário público vai contribuir para Previdência de acordo com sua capacidade contributiva, em que a alíquota varia de 7,5 até 22,5%. Mas, no geral, a proposta tem diversos problemas e, em alguns pontos, agrava o nível de desigualdade. Por exemplo, na questão do Benefício de Prestação Continuada (BPC), uma importante política de transferência de renda para os idosos no combate à pobreza dos últimos 20 anos, ao lado do Bolsa Família. O governo propõe diminuir a idade mínima para que o idoso receba a contribuição, de 65 para 60 anos, mas por outro lado, reduz o valor para R$ 400. Hoje, aos 65 anos, o idoso recebe um salário mínimo, com a reforma, ele recebe um salário apenas com 70 anos. Isso pode gerar precariedade de renda entre a população idosa.
Também corta-se benefício de quem tem o mínimo?
Sim. Na questão de mexer no tempo de contribuição, por exemplo, de aumentar de 15 para 20 anos. O Brasil tem um mercado de trabalho com alta taxa de informalidade. É difícil para um funcionário do setor privado, principalmente os mais pobres, que ganham um salário mínimo ou em torno disso, conseguir ter ininterruptamente 20 anos de carteira assinada. A tendência é que ele trabalhe muito mais que isso, 30 ou 40 anos para conseguir contribuir por duas décadas.
Na questão dos privilégios, como é vista a carreira militar?
O caso mais emblemático é o dos militares, a categoria representa, hoje, 40% do déficit dos servidores e estamos falando de um número de militares que não é tão elevado. A economia gerada pelos militares proposta pelo governo é de R$ 10 bilhões em 10 anos, isso do déficit de R$ 1 trilhão prometido, ou seja, os militares representariam 1% da economia prometida pela PEC da Reforma. Isso é um absurdo, dado que o déficit dos militares na Previdência, hoje, está na ordem de R$ 44 bilhões por ano. Nós temos diversas distorções na carreira militar, evidente que é uma profissão que exige cuidado, de risco elevado e aposentadoria especial, mas é excessivo, comparado a outros países, pensar que um militar pode se aposentar com 45 anos sem contribuir proporcionalmente.
Para os militares, os privilégios serão cortados ou modificados?
Modificados. O governo fez uma proposta para o Regime de Seguridade Militar, inclusive, elaborada pelos próprios militares, e isso é curioso e problemático. Além de mudar algumas regras de contribuição, o que geraria uma economia em torno de R$ 80 bilhões, em contrapartida, reestrutura a carreira militar e, ao fazer isso, aumenta-se o gasto com a categoria em R$ 90 bilhões com bônus, salários melhores e algumas carreiras militares sendo igualadas a carreiras da União. Então, de forma líquida, a reforma dos militares vai economizar R$ 10 bilhões em 10 anos. Quando colocamos a conta no papel, vemos que não houve grandes alterações na questão de privilégios da carreira.
Quais são as principais mudanças no sistema de capitalização?
Um dos pontos mais críticos, e que não foi destrinchado, é o da capitalização, que não está na PEC, mas está como uma lei complementar. Na capitalização, você é responsável pela sua própria aposentadoria fazendo uma poupança ao longo da sua vida em trabalho. A proposta prevê que a contribuição patronal das empresas acabe. Isso vai fazer com que a contribuição do trabalhador diminua bastante ao longo dos anos. O trabalhador para ter uma aposentadoria condizente com a média do seu salário ao longo da vida vai precisar contribuir muito, comprometendo uma parcela maior da sua renda, o que é extremamente problemático. A capitalização tem vários outros problemas, entre eles, pode-se criar uma geração de pessoas recebendo um salário mínimo. As empresas ao perceberem que, sem a contribuição patronal o custo trabalhista diminui, podem forçar todo trabalhador a “optar” pela capitalização. Isso vai matar o regime de repartição.
Qual a justificativa para cortar a contribuição patronal?
A capitalização é muito mal explicada. O Paulo Guedes tem um discurso que as empresas têm um custo muito alto sobre a folha de salário e que cortar a contribuição patronal e dar ao trabalhador uma parcela maior desse processo, segundo ele, geraria mais empregos. Mas, um trabalhador jovem de 25 anos tem muito mais capacidade de ter um plano de capitalização do que um trabalhador de 45 anos, casado, com família, que tem uma parcela da renda comprometida com outros gastos. Isso pode gerar no setor privado a preferência por contratar jovens em detrimento de algumas faixas etárias.
Afinal, por que o sistema previdenciário precisa ser revisto?
A principal razão é a questão demográfica. Somos uma população que tem envelhecido muito rápido. Nosso regime é de repartição, ou seja, o jovem que está trabalhando hoje financia quem está aposentado. Essa relação entre quem está ativo e inativo tem que ser elevada para que o sistema tenha uma sustentabilidade a longo prazo. Essa relação já foi de 8 ativos para um inativo em 2000 e, ela deve chegar até 2060, ao número de 3 ativos para cada inativo. Basicamente, 5 pessoas que financiavam um aposentado, não vão financiar mais.
Outro motivo é a questão fiscal, o Estado tem uma parte muito grande do orçamento consumida pelo gasto público, em termos primários da União, estamos falando de 56% de gasto com Previdência. Do ponto de vista fiscal isso absorve muito do orçamento público e a sustentabilidade das contas públicas, o que é um problema sério do Brasil, que se agravou com a crise de 2014, é e visto pelo mercado como um risco que enxerga no governo uma incapacidade de honrar seus compromissos.
Há também um terceiro eixo voltado para equidade. Há problemas de distorções no regime próprio dos servidores públicos da União e dos estados. Há uma quantidade grande de funcionários que se aposentam ganhando acima do teto constitucional, temos problemas de salários altos em carreiras do setor público que não contribuem de forma progressiva de acordo com o que recebem.
A quais fatores se atribuem a diminuição de ativos?
A taxa de natalidade tem diminuído muito, principalmente, desde as décadas de 70 e 80. As pessoas têm menos filhos do que tinham quando a Previdência foi modelada e faz com que tenhamos menos pessoas em idade para trabalhar do que tínhamos há 30 anos.