Os primeiros resultados do Inquérito Nacional de Saúde LGBTQI, um estudo feito em parceria pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), alertam sobre a saúde mental desta parcela da população. De acordo com os dados, 36% dos participantes relataram episódios semanais de discriminação, sendo que 11% ocorreram dentro de serviços de saúde ou por profissionais da área.
Uma das formas de impacto ao grupo é a alta taxa de diagnósticos médicos de depressão. Enquanto 10% dos brasileiros em geral são afetados pelo quadro, esse índice dispara para 25% entre as pessoas LGBTQI, conforme a Pesquisa Nacional de Saúde.
Sobre o assunto, o Edição do Brasil entrevistou Juliana Torres, coordenadora do estudo e professora do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da UFMG.
Como surgiu a demanda de um estudo sobre saúde mental e população LGBTQI?
A pesquisa se originou devido à necessidade de uma Clínica da Família situada na Ilha do Governador, no Rio de Janeiro, que conta com vários usuários pertencentes à população LGBTQI e os profissionais estavam receosos no momento da abordagem a esses indivíduos. Os motivos eram desconhecimento desde questões específicas até o pronome a ser usado com cada uma das pessoas. Para tanto, iniciamos uma análise inicial com alguns pacientes da clínica, mas por causa da impossibilidade de entrevistas presenciais com estes participantes durante a pandemia, ela foi transformada para on-line e, assim, ampliamos o público-alvo para todos os cidadãos com 18 anos ou mais residentes no Brasil e que se consideram parte da comunidade LGBTQI. Os principais objetivos foram identificar como estão as condições de saúde deste grupo, associados ou não à COVID-19, a fim de melhorar o acolhimento dessas pessoas pelos serviços de saúde.
Muitas vezes a discriminação é associada à agressão, mas não foi isso que a pesquisa mostrou. Quais são as formas relatadas pelos entrevistados?
A discriminação vai muito além da agressão. Em nossa pesquisa, ela foi analisada por meio de um instrumento validado e muito utilizado em trabalhos científicos para avaliar a discriminação psicológica. Para isso, foram feitas seis perguntas relativas a ser tratada com menos respeito, sentir-se ameaçado, perceber que as pessoas agiam como se você fosse pouco esperto, como se tivessem medo de você e ainda se essas pessoas recebiam pior atendimento em restaurantes, lojas e serviços de saúde. O destaque é que 36% dos participantes do estudo relataram episódios semanais de discriminação, sendo que 11% ocorreram dentro de serviços de saúde ou por profissionais da área.
Outro destaque da análise é a alta taxa de depressão entre a população LGBTQI. Qual é a relação feita?
Os elevados índices de diagnóstico médico de depressão encontrados nesta população podem ser explicados por dois motivos que não são excludentes. Primeiro que as próprias medidas de distanciamento social impostas pela pandemia da COVID-19 contribuem para esse aumento. A segunda razão são os altos níveis de discriminação sofridos por essas pessoas e reportados semanalmente, o que sobrecarrega a saúde mental do indivíduo. Temos que considerar que o questionário foi on-line e, por isso, aqueles que não têm acesso à internet, aproximadamente 20% da população brasileira, não puderam participar. Também é necessário ponderar que nossos participantes são pessoas com elevado nível de escolaridade, que reflete um grupo de classe média para cima, sendo excluída a população com maior vulnerabilidade social. Mas, mesmo assim, ainda encontramos uma elevada fragilidade à COVID-19, que incluem condições de renda e trabalho, a exposição ao vírus e as circunstâncias prévias de saúde e acesso aos serviços de saúde. Podemos atribuir essa alta taxa ao conjunto dessas três dimensões.
Em relação ao espaço e acolhimento familiar desta população, o que o estudo mostrou?
Em relação à família, foram perguntados sobre o número de indivíduos que moram na mesma casa e quem são eles, como pais, irmãos, companheiro ou companheira, e se essas pessoas sabem sobre a identidade de gênero ou orientação afetiva do participante e se o aceitam. Vimos que 16% dos entrevistados nunca contaram sobre essas questões a parentes próximos e que 55% já sofreram algum tipo de violência por parte da família. Ou seja, vemos que ainda há uma dificuldade de aceitação dentro do próprio seio familiar e que esse acolhimento afetivo, muitas vezes, fica prejudicado na população LGBTQI.
Esses dados serão usados para políticas públicas?
Os principais objetivos foram identificar como estão às questões de salubridade deste grupo a fim de melhorar o acolhimento desta população pelos serviços de saúde. Pudemos identificar alguns determinantes sociais que afetam diretamente a saúde da população LGBTQI, como os episódios de discriminação no atendimento em clínicas, postos e hospitais, o que se mostra uma barreira de acesso a esses serviços e uma maior vulnerabilidade à COVID-19, o que resulta em maior carga de saúde mental destes cidadãos. Primeiramente, esses dados embasaram o início de palestras voltadas aos agentes comunitários de saúde e atendentes desta clínica na Ilha do Governador. Em relação à definição de identidade de gênero e pronomes de tratamento que devem ser usados em cada uma das situações, além dos tipos de orientações afetivas, também estão sendo organizadas palestras para os demais profissionais da saúde. Além disso, acredito que seja pertinente a formação de uma linha de cuidado específica da saúde mental desta parcela da população junto à rede de saúde mental do Sistema Único de Saúde (SUS) que já está implantada no Brasil.