Apesar de somarem quase 60 milhões de brasileiras, 28% da população, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Pnad Contínua -IBGE), apenas 7,4% dos comerciais de televisão são protagonizados por mulheres negras. Juntas, elas movimentam, segundo levantamento do Instituto Locomotiva, cerca de R$ 704 bilhões por ano no país. Como personagens na TV, 21% das protagonistas são negras contra 74% brancas. Esse índice representa um aumento de 600% na participação da mulher negra, desde o primeiro estudo, que já chegou a ser de 1%. Os dados são da pesquisa Todxs, da agência Heads. O Edição do Brasil conversou com Barbara Lima, publicitária focada em mídias sociais, marketing digital e comunicação corporativa, sobre a disparidade de representatividade no mercado publicitário brasileiro.
A que você atribui esse tratamento de invisibilidade do mercado publicitário às mulheres negras?
Nunca houve uma abolição de fato. O que aconteceu foi a formalidade, mas as raízes foram tão profundas que nos formaram como sociedade. E se pensarmos que no período escravocrata, os negros e os indígenas eram tidos como povos sem almas e que, no período imperial, a constituição da época dizia que negros não tinham direitos, começamos a entender o que hoje chamamos de invisibilidade, não só das mulheres negras, mas do povo negro como um todo. Por um momento, esse povo não existia enquanto pessoa com alma, depois enquanto cidadão com direitos e agora, centenas de anos depois, esse cenário começa a mudar. Mas, até isso se reverter, visto que o Brasil tem maioria negra, é um longo trabalho.
Também é importante lembrar da interseccionalidade, porque a mulher negra sofre do que chamamos de múltiplas opressões e isso a coloca em um lugar ainda mais oprimido que o do homem negro. Por exemplo, a mulher negra sofre por ser negra, ser mulher e, muitas vezes, por ser pobre. Na questão do colorismo também, quanto mais retinta é uma mulher, maior a opressão sofrida do que as negras de pele clara.
Em quais segmentos a mulher negra se destaca como uma potencial consumidora, mas não é explorada pela publicidade?
Essa pergunta me faz lembrar uma frase da Angela Davis: “Quando uma mulher negra se movimenta, toda a sociedade se movimenta com ela”. Isso porque a mulher negra é a base da sociedade se levarmos em consideração inúmeros fatores. As mulheres negras se destacam em todos os mercados, uma vez que somos maioria da população. É claro que não podemos esquecer do processo de escravização e que isso delimitou os lugares e os acessos dela. Mas, destacaria a atuação da mulher na hora de empreender. Hoje, a gente tem visto um empreendedorismo de palco, baseado numa meritocracia, mas as negras sempre foram empreendedoras pela necessidade. Quando falo do empreendedorismo feminino negro, lembro do que o Anderson França, criador da Universidade da Correria no Rio de Janeiro, diz sobre trabalhar com mulheres negras. Enquanto ele está ensinando conceitos básicos, elas já fazem na prática. A necessidade desse grupo ser empreendedor, desde sempre, fez com que ele dominasse esse mercado, mas mesmo assim não é visto.
No geral, a representatividade da mulher negra avançou ou ainda é mínima?
Com um viés bem positivista da vida, acredito que tivemos um avanço, que é importante e deve ser celebrado, porém, é mínimo. Quando falamos sobre representatividade devemos entender a forma como ela acontece porque isso importa muito. A representatividade não deve ser algo final do tipo “tem que colocar a mulher negra na publicidade”, essa é a materialidade da coisa, mas é importante pensar de que forma ela é retratada. Tanto a contratação das empresas, quanto a representação dessas mulheres na publicidade é feita só para cumprir uma espécie de cota? Porque se sim, não devemos nem chamar de progredir, mas de regresso.
De que forma essa falta de representatividade se manifesta no mercado publicitário?
Confio na comunicação como um processo de interação. Sob essa perspectiva, como publicitária e criadora de conteúdo, converso com meu público num processo circular e de trocas em que construímos esse universo compartilhado que é a sociedade. Acreditando nisso e estando no mercado publicitário, percebo que com essa falta de representatividade, o processo de interação não se conclui. Quando todos em uma agência são homens, brancos e de classe média e, do lado de lá, o público é feminino e negro, as chances desse processo interacional da comunicação gerar conflitos são grandes. Estamos falando de uma falta de vivência, do famoso lugar de fala. Claro que o mercado está se movendo para mudar isso, mas muito mais por uma exigência do público, que nunca se viu representado, do que por uma benevolência das marcas.
Por onde as empresas precisam começar a mudar?
Entendendo que empresas, produtos, instituições e serviços são feitos por pessoas, a mudança começa por elas. Nesse sentido, a alteração passa por uma revisão de questões sociais brasileiras básicas. Uma das que acho mais importante é o branco se entender como raça, assim como o negro. Isso é essencial porque a gente para de reproduzir uma lógica de que o branco é universal e o negro é a variante. E se entender como raça é fundamental para um discurso franco, conversas com pontos de vistas racializados, ou seja, quando um branco fala, não é em nome da sociedade com um todo, é a partir do ponto de vista dele. Imagina um processo seletivo em que o discurso é “somos todos iguais, não vamos falar de raça”, só que quando você vai ver o “somos todos iguais” é “somos todos brancos”. Quando não há um recorte racial é porque o social já está dado, e ele é branco. Se racializarmos as discussões, jogamos mais limpo. Com essa consciência racial, começamos a mudar.
Como o poder de compra pode ser uma ferramenta política para comunidade negra?
Entendo e defendo que algumas portas só se abrem por dentro. Quando falamos de uma população de mulheres negras fazendo R$ 704 bilhões circular por ano, estamos falando de negras entrando em lugares onde elas não estavam antes. Em uma sociedade capitalista, o poder de compra é uma ponte que coloca a população negra, como um todo, dentro de lugares que, estando dentro, consegue abrir as portas para os demais.