Durante 20 dias, entre 270 e 300 servidores da Segurança Pública de Goiás e Distrito Federal (DF) procuraram por Lázaro Barbosa, acusado de matar quatro pessoas de uma mesma família em Ceilândia (DF). O criminoso, que acabou morto pela polícia, era dono de uma extensa ficha criminal. Já havia sido preso por duplo homicídio, mas fugiu. Depois, foi detido por suspeita de roubo, estupro e porte ilegal de arma de fogo. Durante o regime semiaberto, fugiu novamente. Em 2018, voltou a ser preso, mas escapou no mesmo ano por um buraco no teto da cela. Como o sistema judicial e carcerário brasileiro prende uma pessoa que representa perigo à sociedade, mas o deixa escapar sucessivamente? Sobre o assunto, o Edição do Brasil conversou com Luis Flávio Sapori (foto), sociólogo, ex-secretário Adjunto de Segurança Pública do Estado de Minas Gerais e coordenador do Centro de Estudos e Pesquisas em Segurança Pública da PUC Minas.
Esse caso evidencia como o Judiciário falha em identificar pessoas que não podem voltar às ruas, uma vez que ele já tinha uma longa ficha criminal. Por que isso acontece?
Este é o ponto principal. O maior erro no caso Lázaro é do sistema de justiça como um todo, principalmente na instância prisional. Foram incapazes de identificar, em uma análise individualizada, o criminoso que está demandando benefícios legais. Isso é muito comum no Brasil e ilustra uma ausência de análise de perfil criminológico do indivíduo e do seu grau de periculosidade. Claramente, ele não poderia receber benefícios previstos por lei em relação a outros criminosos que representam menos riscos à sociedade. Nos meus estudos, digo que o sistema de segurança como um todo é frouxamente articulado. A relação das polícias com o Ministério Público (MP), com Judiciário e com o prisional é desarticulada, não há troca sistemática de informações. Eles não compartilham conhecimentos entre si. Ele foi tratado como pertencente à massa de qualquer outro criminoso, o que foi um erro. Portanto, outro aprendizado é como a gestão prisional e a execução da pena no Brasil precisam considerar uma análise criminológica mais individual. Certos criminosos não podem ter a possibilidade do regime semiaberto.
Como funciona o compartilhamento de informações entre as polícias para gerar resultados conjuntos?
Precaríssimo. Não há base de dados compartilhada. Não existe um integrado de informações. Cada órgão tem seus próprios dados e não se divide uns com os outros. Quando a polícia prendeu o Lázaro e ele foi julgado e condenado à prisão, parou de ser monitorado. Não era mais vigiado por ninguém. Por isso, chamo de sistema frouxamente articulado. Não há cooperação, é muito conflituoso, segmentado e corporativista. Cada instituição segura sua informação no seu quadrado. Esse é um dos principais problemas que gera impunidade no Brasil, do meu ponto de vista. Mas, o problema não é só das polícias, é do MP, do Judiciário e do carcerário. É um defeito do todo. Como eles não possuem a capacidade de monitorar os criminosos mais graves, eles escapam pelos dedos em situações como essas.
Como você avalia a área de inteligência da Segurança Pública do país?
O caso Lázaro pode servir de modelo de reflexão para as secretarias de Segurança Pública do país. Entendo que cabe a elas serem o grande órgão responsável por articular todas as áreas de inteligência, compartilhar as informações e realizar o monitoramento dos criminosos mais violentos de cada estado. São as secretarias que deveriam organizar as polícias, dialogar com o MP e monitorar esses presos nas cadeias. É preciso trocar informações constantemente. Na verdade, nós precisamos construir essa inteligência integrada de todos os órgãos para evitar que isso continue acontecendo no cotidiano.
A pesquisa Índice de Paz Global 2021 revelou que 83% da população do Brasil afirma temer ser vítima de um crime violento. Por que o trabalho da polícia não “tranquiliza”?
Porque não é um problema só da Polícia Militar ou Civil. A impunidade no Brasil é muito elevada, o que eu chamo de impunidade é a ineficiência do sistema de segurança e justiça criminal em identificar, processar e punir criminosos. O todo funciona mal e é ineficiente. Isso acaba gerando indivíduos cometendo muitos crimes e voltando para as ruas depois da prisão também para cometer novos delitos. O grau de reincidência é muito elevado. Na prática, isso gera muitos homicídios, assaltos, estupros, tráfico de drogas e corrupção. Por isso, a sociedade brasileira é a do medo e da insegurança, porque, efetivamente, o Brasil é um dos países mais violentos do mundo.
A relação entre imprensa e polícia já causou tragédias. Nesse caso específico, como você avalia a cobertura exaustiva da mídia?
Alguns órgãos de comunicação cobriram de forma tranquila, informativa e responsável. Outros, principalmente na televisão, priorizaram uma cobertura diária, sensacionalista, com repórteres em campo extensivamente acompanhando o trabalho policial. Esse tipo de cobertura, que espetaculariza, é perversa e fez do Lázaro um monstro muito maior do que ele era na prática. A população começou a enxergá-lo como uma fera solta. Era um criminoso grave, não há dúvidas, mas essa cobertura de parte da imprensa televisiva, certamente, fez do caso um espetáculo midiático em busca de audiência. Isso gera mais medo, insegurança e não contribui em nada. Ele era um transgressor muito mais tosco, local e provinciano do que se imaginava. A possibilidade de ele ser capturado vivo era muito pequena. Não há dúvidas que o espetáculo criado em volta dele fomentou uma postura reativa da polícia mais dura e que sua prisão com vida poderia ser mais danosa do que o desejado politicamente.