No dia 7 de novembro Joe Biden foi eleito o 46° presidente dos Estados Unidos. A vitória foi anunciada após projeções de institutos e meios de comunicação indicarem sua vantagem na Pensilvânia, fazendo com que o democrata conquistasse 270 delegados no colégio eleitoral.
Dias após o pleito terminar, Donald Trump segue negando sua derrota, afirmando – sem provas – que houve fraude na apuração e que irá recorrer à Justiça. Jair Bolsonaro, apoiador declarado de Trump, segue a mesma linha do republicano. O presidente brasileiro é um dos poucos que, até o fechamento dessa edição, não havia reconhecido a vitória de Biden e continua acreditando que Trump vai virar esse jogo.
Mas até onde essa negação pode ser inteligente por parte de Bolsonaro? O Edição do Brasil conversou com o professor de Relações Internacionais Vladimir Feijó, que explicou que essa eleição provocará ajustes de expectativas. “Nosso país já deveria ter um plano para cada cenário. Não parece ser o caso”.
Quais serão os impactos da conquista de Biden para o Brasil?
A vitória de Biden isolará Bolsonaro e o ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo que seguem perseguindo inimigos presentes apenas a seus olhos, como Dom Quixote. Antes podiam se ancorar no fato de Trump, talvez, ter uma visão parecida com a deles. Não será fácil convencer a base interna a apoiar as ações mundiais se a aliança internacional seguir apenas com as teocracias islâmicas e regimes autoritários do Leste Europeu e Sudeste Asiático, antes escondidas pela presença de Trump no emaranhado.
A vitória do democrata é positiva para o nosso país?
O Brasil não está nas prioridades nem de Trump nem de Biden. Trump gosta de contar com aliados, mas não hesita em abandoná-los se alguma oportunidade melhor aparecer. Biden não deixará de aproveitar chances de se mostrar firme perante países que desagradam seu eleitorado. Para isso ser benéfico para nós precisamos ter nossas posições a respeito de como usar as organizações internacionais a nosso favor.
No passado, conseguimos atrair benefícios da escolha de sermos porta-vozes de grupos de nações em diferentes esquemas de cooperação sul-sul, seja líder dos países sul-americanos, do atlântico-sul e/ou de exportadores de grãos. O governo está adotando alinhamento aos padrões dos EUA ou da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), não apenas quando nos convém e deixando de negociar com outras nações a formação de blocos que, como grupo, sejam competitivos o suficiente para obter concessões de países ou blocos muito mais fortes que nós sozinhos.
Bolsonaro criticou e ignorou a vitória de Biden. É arriscado cultivar essa relação espinhosa com o presidente eleito dos EUA?
Não há dúvidas que a vitória de Biden provocará ajustes de expectativas. Eventualmente, ele irá escolher um novo rumo da diplomacia perante o mundo e isso fará com que todos os países revejam suas relações. O Brasil já deveria ter um plano para cada cenário. Não parece ser o caso. Por meses sabe-se que a eleição nos EUA seria acirrada e devíamos ter construído um plano de ação.
Qualquer governo entende que precisa ter um grupo forte de aliados no Congresso dos EUA, porque lá o Executivo precisa de prévia autorização para assinar acordos. Isso é feito em comissão mista de deputados e senadores e, também, com representantes dos partidos Republicano e Democrata. Não dá para escolher lado em disputas internas, pois isso impede a formação da maioria necessária para aprovar os projetos.
Biden criticou o desmatamento da Amazônia e disse que vai “reunir o mundo” caso o Brasil não proteja a floresta. Como você analisa esse posicionamento?
No campo do Direito Internacional e da diplomacia há um consenso estabelecido de que existem bens de domínio público mundial. Uma série de acordos amarram todos os países a metas sobre a exploração dos oceanos e florestas. O caso é que esses pactos foram assinados sob a liderança do Brasil, inclusive que fez questão de, nas décadas anteriores, utilizar isso como trunfo para sediar encontros no país, atrair atenção para nossa realidade e investimentos.
Mas isso não agradou setores internos que seguiram violando a legislação e fazendo pressão política para a reversão dos compromissos internacionais. Esse grupo parece ter apoio na atual gestão do Palácio do Planalto que afrouxou a fiscalização, perdoou dívidas e tem facilitado à regularização de posse em áreas de desflorestamento. Além disso, vale citar uma piora de imagem perante o consumidor estrangeiro no varejo, que pode boicotar o Brasil por não desejar consumir produtos oriundos de relações análogas à escravidão ou de produtores responsáveis pela degradação ambiental.
Durante o mandato de Trump, Bolsonaro demonstrou ser próximo ao presidente norte-americano. Até que ponto isso reverteu em benefícios para o nosso país?
Não colheremos nenhum benefício pragmático por mera aproximação pessoal e ideológica com o líder de outro país. Há tempos que as relações são mais complexas que breves acordos de cavalheiros. Apesar do anúncio de três pactos com os EUA, no fim de outubro, eles não foram sequer submetidos à apreciação dos congressos americano e brasileiro.
Podemos falar da doação de material bélico de 1960, que serão transformados em ambulâncias, central de comunicações ou adequados aos padrões das Forças Armadas. Mas, deixamos de realizar encomendas da indústria nacional de defesa que estava em renascimento na década anterior e o orçamento de investimento em tecnologia nacional foi revertido para ampliação dos penduricalhos e pensões militares.
Em quais pontos houve avanços e perdas para o Brasil levando em conta a relação com os EUA?
Da aproximação de Trump colhemos a opção estranha do ministro das Relações Exteriores em desdenhar organizações internacionais que há muitos anos serviram de base para o Brasil mostrar seus diferenciais e atrair investimentos. O alinhamento automático a propostas dos EUA gerou atritos com outros parceiros tradicionais da América do Sul, Ásia e Europa. Por outro lado, houve estreitamento de relações ideológicas, especificamente contra medidas de igualdade de gênero, com países do Leste Europeu e Oriente Médio, mas sem qualquer vantagem econômica.
Houve também retificação na crítica sobre as mudanças climáticas. A opção por escolha nacionalista tomada a toque de caixa pelo Executivo, com devida coordenação com todos os setores do governo e também da sociedade civil, nos expôs a perigos de retaliações futuras por descumprir compromissos com metas de redução de emissões de poluentes, combate a violações aos padrões de relação de emprego e dos direitos das nações indígenas.
Isso nos afastou de seguir firmes nas reivindicações contra o protecionismo americano que tanto nos prejudicam. Pelo contrário, o governo nem reclamou quando Trump impôs sobretaxa aos produtos brasileiros por causa da enorme desvalorização do real. Esta parece, inclusive, ser a única medida que o governo brasileiro tem para estimular as exportações, contar com a artificialidade cambial para tornar os produtos mais baratos para os estrangeiros. Em contrapartida, todas as importações de tecnologia para atualizar nosso parque industrial e mantê-lo competitivo ficaram muito mais caro.