Se você ainda não viu, vale a pena dar uma googlada na cena em que o presidente Jair Bolsonaro exibe para uma significativa aglomeração uma embalagem de hidroxicloroquina, medicamento que tem defendido contra a COVID-19. Já vou avisando: será uma das coisas mais grotescas que você terá visto nos últimos tempos. No vídeo, Bolsonaro, infectado pelo vírus, caminha no Palácio do Alvorada até o espelho d’água, que o separa de seus apoiadores. Logo depois de ouvir algumas manifestações de apoio, saca do bolso uma caixa do medicamento e o ergue com as duas mãos acima de sua cabeça como se levantasse um objeto ou símbolo religioso. Os fiéis, digo, apoiadores aplaudem e gritam.
Neste ato, o presidente tem a intenção de transformar a hidroxicloroquina em uma espécie de relíquia sagrada capaz de trazer a cura para a nova peste que assombra e dizima milhares de pessoas em todo o mundo. Parece uma cena de filme medieval em que um rei ou um papa exibe o santo graal ou a cabeça de São João Batista para uma multidão de servos ignorantes. A alusão que faço à idade média não é desinteressada. Em pleno século XXI, mais de 500 anos depois do início do renascimento, após tantas revoluções culturais, industriais e científicas, ver um líder nacional defender o uso de uma substância comprovadamente sem eficácia me parece um retrocesso milenar. O que é pior: apesar de toda manifestação científica contrária ao uso, parte da população brasileira prefere acreditar no que diz seu messias.
O ato no Palácio do Alvorada não foi a primeira vez que o presidente fez publicidade gratuita para o medicamento. Assim que teve a infecção pelo novo coronavírus comprovada, Bolsonaro gravou um vídeo em que aparece todo pimpão tomando um comprimido e dizendo que já está melhorando da doença. Ele finaliza o vídeo como se estivesse em um comercial de margarina. “Eu confio na hidroxicloroquina e você?”, ele pergunta. Se você ainda não viu esse vídeo também, não deixe de assistir.
Na semana passada, a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) divulgou um posicionamento contra o uso da hidroxicloroquina para o tratamento da COVID-19. Na nota, a SBI citou estudos publicados que comprovam a ineficácia do medicamento em qualquer fase da doença e recomendou que ele fosse abandonado. A entidade solicitou ainda que agentes públicos, incluindo municípios, estados e o próprio Ministério da Saúde reavaliem suas orientações de tratamento, não gastando dinheiro público em tratamentos ineficazes e que podem causar efeitos colaterais. É a ciência tentando iluminar os caminhos a serem seguidos neste momento de obscurantismo nas mentes de tantas pessoas.
Enquanto nosso presidente trava uma guerra ideológica contra a ciência, mais de 80 mil brasileiros já perderam a vida pela COVID-19. Desde o início da pandemia, Bolsonaro adotou um tom negacionista. Você se lembra que em rede nacional ele chamou o novo coronavírus até de gripezinha. Com essa postura, já somos o segundo país com maior número de mortes pela doença. Só ficamos atrás dos Estados Unidos, cujo presidente serve de exemplo para o nosso.
É assustador analisar e comparar os gráficos da evolução por morte de COVID-19 do Brasil com outros países. A diferença entre as curvas daqui e com as curvas da Itália, Espanha e França são muito evidentes. Lá, como você se lembra, houve um rápido crescimento de mortes até chegar no pico. Em seguida, as curvas têm uma forte queda. Hoje, a Itália, que já contabilizou 919 mortes em um dia, apresenta uma média de 15 óbitos diários. Aqui no Brasil, atingimos o pico e caminhamos de lado. Há mais de dois meses registramos mais de mil mortes todos os dias, em média. A queda brusca do número de mortes nesses países coincide com as medidas de forte controle do isolamento social, utilização de máscaras e higienização de ambientes, atitudes tão recomendadas pelos cientistas. Na maioria desses lugares, um lockdown de 8 semanas serviu para diminuir drasticamente a contaminação e permitiu uma reabertura mais controlada e segura.
Aqui, enquanto o governo federal não levar a sério essa pandemia e seguir os conselhos da ciência, vamos seguir perdendo milhares de vidas e continuaremos impedidos de reabrir a economia, até que uma vacina inventada pela ciência venha nos salvar.
*Jader Viana
Jornalista e economista
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