Em meados dos anos 1970, o Brasil se rendia e se prendia à novela “Saramandaia” que, além de refinado humor, trazia o chamado “realismo fantástico”, naquela incansável busca de driblar a mão pesada da censura imposta pelo governo militar que ainda vigorava à época, e assim, não ser preso. “Saramandaia” apresentava-se em um contexto de personagens inusitados para, no modo possível, abordar questões políticas, culturais e socioeconômicas, transformando a cidade fictícia da novela em um microcosmo do país.
Passado quase meio século, pasmem, ou não, ainda é possível ver muito daquela realidade. A polarização entre os “tradicionalistas” e os “mudancistas” da história escrita por Dias Gomes, é apenas o pano de fundo para a identificação de interesses políticos e econômicos que estavam por trás da longa discussão sobre a mudança do nome da cidade. Não poderíamos imaginar que esse enredo se repetiria mais de 40 anos depois, em um realismo nada fantástico.
Muito se fala na crise econômica. As manchetes dos jornais mostram o aumento da inflação, dos juros, a deterioração do nosso dinheiro e a consequente diminuição do poder de compra do cidadão comum. Somado a isso, a falta de repasses dos governos estadual e federal dificultando a vida daqueles prefeitos que não tivessem como maquiar os números e, ainda assim, disputariam a reeleição.
Isso resultou numa disputa ainda mais acirrada nas últimas eleições municipais. Em 2016 vimos a menor taxa de reeleição de prefeitos da história. Apenas 48% daqueles que já detinham a máquina pública conseguiram se sustentar à frente do Executivo municipal. A equação não é difícil: a arrecadação dos municípios caiu para níveis anteriores aos de 2013 ao passo que a taxa de sucesso dos candidatos à reeleição, que em 2012 foi de 54%, não coincidentemente, também caiu seis pontos percentuais. Menos dinheiro em caixa, menos obras, menos investimentos ou qualquer outro tipo de gasto para agradar os eleitores, menos votos para se manter no cargo.
Como se não bastasse o quase insuportável sucateamento dos serviços básicos como, saúde, educação e infraestrutura urbana, as possibilidades de reeleição foram ainda mais comprometidas por aquilo que alguns chamam de “crise moral”, outros, de “crise ética”. Em tempos de Operação Lava Jato dá-se a impressão de que poucos estarão a salvo. E claro, os reflexos de todas as denúncias, prisões e investigações de corrupção não poderiam deixar de ser sentidos, também, no âmbito dos municípios. Dados divulgados pela Justiça Eleitoral, antes de outubro passado, apontaram que, em média, um prefeito foi retirado do cargo a cada 8 dias, considerando o período do mandato 2012 até meados de 2015. Repetindo: a cada 8 dias, um prefeito perdeu o mandato que seria de 4 anos.
De acordo com dados Confederação Nacional dos Municípios, desde que a reeleição começou a ser permitida, no ano 2000, nas eleições anteriores, mais de 55% dos prefeitos que concorreram acabaram se reelegendo. O maior percentual foi registrado em 2008, com 66% de índice de reeleição, ano em que os municípios e a economia estavam em um processo positivo.
Nas últimas eleições, no entanto, o recorrente apelo por mudança foi marcante e decisivo. O discurso geral era “devemos mudar”. A ordem era ressaltar as propostas que não foram cumpridas, as promessas que não passaram de promessas e, também, os vácuos gerados pela incapacidade dos prefeitos. Ainda assim, com todo o alerta nas eleições, muitos prefeitos foram reeleitos. E isto pode não ter sido bom.
Mas, o pior está a caminho. Não há perspectiva de aumento de receitas dos municípios, de mudança sensível na repartição dos tributos e, com isso, a situação tende a se agravar. O que se avizinha, muito provavelmente, é mais uma grande decepção para o cidadão comum, para o eleitor. Nesses próximos 2 anos, nesses próximos capítulos da vida real, o roteiro não deverá ser dos mais agradáveis, corroborando para que os atuais mandatários municipais, em especial os reeleitos, tenham seríssimas dificuldades de relacionamento com seu eleitorado.
“Saramandaia”, aquela pequena cidade fictícia do interior de Pernambuco, que o Brasil conheceu em 1976, e que, na novela, realizava um plebiscito para definir sobre a mudança de seu nome, já mostrava uma lamentável construção de um modelo político que teimou em permanecer por mais de 40 anos na prefeitura.
A nossa “Saramandaia”, país “grande e bobo”, teima em bater recordes de corrupção. Nosso país parece não se envergonhar dos seus políticos e insiste em eleger pessoas totalmente incapacitadas para o exercício do poder. Insistimos em exibir este trágico roteiro dessa malfadada novela de um cotidiano perverso.