Não há dúvidas que a ditadura militar no Brasil causou grandes fissuras, porém o que pouco se sabe é como o governo agiu no meio rural. Segundo dados de 2012 da Secretaria Nacional de Direitos Humanos e do relatório final da Comissão Camponesa da Verdade em 2014, o Estado reconhece apenas 29 dos 1.196 camponeses assassinados durante esse período.
Para entender como a repressão afetou os movimentos sociais durante os anos de ferro e as atuais demandas, o Edição do Brasil conversou com Humberto Santos Palmeira. Ele é integrante da Direção Nacional do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e militante do movimento desde 2003.
Você acha que existe a intenção de criminalizar os movimentos da esquerda no campo?
Sim, como parte do golpe, há um processo de criminalização dos movimentos sociais. Atualmente, há uma votação online no site do Senado para poder criminalizar os movimentos que ocupam propriedades privadas. Há também um aceno dos movimentos conservadores, retrógrados e antidemocráticos em relação ao direito social da terra. Após 2016, houve uma tentativa de enquadrar movimentos sociais como organizações terroristas.
Como a reforma trabalhista pode dificultar a vida dos camponeses?
As forças que atuaram para que o golpe acontecesse são as mesmas que estão atuando no campo. Esses grupos, tanto individuais quanto empresariais, estão causando o aumento da violência, sobretudo, no último ano. Os mecanismos que o Estado tinha para dialogar e tentar resolver a situação foram destruídos, a própria função do Estado democrático de direito foi esfacelada pelo golpe e, parte disso, pode ser visto na questão trabalhista. Essa possível mudança vai levar vários trabalhadores do campo a um estado de quase escravidão.
Como a ditadura militar atuou no campo?
O processo de repressão aos camponeses, segundo o estudo Nacional da Comissão da Verdade, começou antes de 1954. Esse movimento iniciou em 1945 e intensificou nos últimos 10 anos antes do golpe. Em 1954, houve perseguição às lideranças e, em 1962, um dos principais nomes das ligas camponesas, João Pedro Teixeira, foi assassinado . Após o golpe de 64, isso aumentou.
De imediato, aconteceram prisões em massa. Pernambuco foi um dos estados que mais encarceirou (mais de 5 mil camponeses) e na cadeia houve um processo de triagem para saber quem fazia parte das mobilizações. As pessoas que eram envolvidas com as ligas foram torturadas e, consequentemente, ocorreu um desmonte das organizações.
Por que não há o reconhecimento da morte desses camponeses?
Isso acontece pelo próprio caráter do Estado, pois boa parte desses assassinatos e desaparecimentos tem a mão de agentes públicos de segurança, de forma direta ou indireta, afinal os jagunços que atuavam nesse período tinham o apoio do Estado. Investigar as mortes na ditadura significa ter que chegar a culpados e isso não é de interesse do governo.
Como foi a Comissão Camponesa da Verdade?
Foi uma vitória para os movimentos camponeses, porque pouco se conhece sobre o processo de repressão no campo. Eles conseguiram, com poucas condições e infraestrutura, fazer um belo relatório que mostrou a dimensão de como a ditadura atuou neste segmento e as consequências no processo de reorganização do movimento. Uma pena não terem finalizado o trabalho, que encerrou as suas atividades após o golpe de 2016.
Ainda acontecem mortes de camponeses em situação semelhante a ditadura?
Sim. De acordo com dados de 2016, nesse ano morreram mais de 70 lideranças, sendo que esse é o maior número desde 2003. Com o golpe de 2016, a violência no campo aumentou e a própria expansão do agronegócio significa expulsar camponeses e quilombolas. E como o Estado é conivente, isso vai crescer.
Podemos dizer que a ditadura era a favor do agronegócio?
O agronegócio, como conhecemos hoje, formou-se durante a ditadura. Nesse período, houve um processo de modernização conservadora, ou seja, ocorreu a modernização agrícola, com a introdução da revolução verde e de máquinas no campo, entretanto, a estrutura fundiária continuou a mesma.
E quais são as pautas da luta camponesa atual?
A primeira questão é retomar a estrutura que o governo golpista destruiu do Ministério do Desenvolvimento Agrário. Desde que Temer (MDB) entrou, destruiu o que garantia o mínimo de políticas públicas para o campo. Além disso, há a privatização da Petrobras e Eletrobras. As pessoas acham que elas não têm ligações com o campo, porém quem planta precisa de energia elétrica e combustível e isso pode afetar o processo de produção de alimentos. Além disso, temos que realizar uma ampla reforma agrária, com programas públicos de alimentos. Em 2 anos de golpe, a fome está voltando com tudo no Brasil.