A discussão do Projeto de Lei (PL) 1.904/2024, que equipara o aborto realizado após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio simples, inclusive nos casos de gravidez resultante de estupro, dividiu opiniões no Brasil. O texto é de autoria do deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL) e outros 32 parlamentares.
Com a repercussão negativa, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP), decidiu que o texto será debatido no segundo semestre. Para discutir os impactos dessa medida no país, o Edição do Brasil conversou com a presidente da Comissão Nacional de Gênero e Violência Doméstica do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), Adélia Moreira Pessoa.
Em quais situações o aborto é permitido no Brasil?
O direito brasileiro é claro quanto às hipóteses em que a interrupção da gravidez pode ocorrer. No Código Penal, desde 1940, reconhece a possibilidade do que denomina “aborto legal” quando não há outro meio de salvar a vida da gestante e quando a gravidez resultar de estupro, se precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de representantes legais, denominado “aborto humanitário”. Além dessas hipóteses, desde 2012, existe a possibilidade de interrupção lícita no caso de gestação de feto anencefálico.
Seria um retrocesso a aprovação do PL no Congresso Nacional?
Com certeza, um retrocesso de mais de 80 anos. As vítimas de estupro, em sua maioria, são crianças de até 13 anos, sem maiores informações e sem educação sexual nas escolas. Boa parte dos autores são pessoas próximas que ameaçam a vítima se revelar o fato, assim, a mulher esconde a gravidez ou mesmo se dá conta da gestação após alguns meses. As necessárias políticas públicas com as medidas de atendimento adequado e em tempo oportuno no Brasil não são suficientes. E considerar o aborto da mulher, vítima de estupro, como homicídio é cruel, desumano, estarrecedor e é uma violência psicológica institucional contra as mulheres e meninas.
Quais seriam os principais impactos desse Projeto de Lei?
O texto está profundamente relacionado à desigualdade de gênero na prática social, ao desconhecimento das Convenções Internacionais que o Brasil ratificou, inclusive em relação aos direitos da criança, à desconsideração de princípios basilares da Constituição de 1988, como a dignidade humana. As meninas e adolescentes vítimas de estupro sofrerão o impacto maior, visto que não conseguirão acesso para realizar o aborto em 22 semanas e serão obrigadas a recorrer a “aborteiras”, na contramão dos direitos humanos. A situação é mais grave pois verifica-se que a violação sexual infantil aumenta o número de gestação de risco, pois mães de 10 a 19 anos, têm maior risco de eclampsia, endometrite puerperal e infecções sistêmicas; nesses casos, há um maior risco de nascimento prematuro e doenças neonatais graves.
Uma pesquisa recente mostrou que metade da população é contra o PL. Mesmo com essa rejeição, a proposta pode ser aprovada?
Não acredito que seja aprovada pelo Congresso, um PL inconstitucional e contrário às convenções internacionais assinadas pelo Brasil. A reação dos movimentos sociais foi enorme e continuará até que este PL seja arquivado e não ressuscitem outros PLs que trazem grandes retrocessos, ferindo a dignidade humana da mulher.
Acredita que mais mulheres vítimas de estupro podem buscar interromper a gravidez de forma clandestina?
Sem dúvida, pois vai atingir duramente as camadas mais pobres da população, que precisam procurar os serviços públicos e, não obtendo a solução necessária, irão buscar outros caminhos e haverá aumento de mortalidade materna e sequelas que serão suportadas pelas mulheres.
De que forma o país pode melhorar o atendimento a essas mulheres?
Mesmo com a existência das leis, os serviços públicos ainda são deficientes. Muitos abortos não foram feitos de modo seguro, ocorrendo através de pessoas sem a habilidade necessária e/ou em um ambiente sem padronização. A interrupção da gravidez é um importante problema de saúde pública em todo o mundo, especialmente nos países com leis e serviços que restringem a sua prática. O fato não deve ser tratado como questão criminal, apenando a mulher. O aborto inseguro tem graves consequências como morbidade e mortalidade da mulher e atinge duramente as mais pobres.