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“Como o governo pode combater o racismo se o nega?”, questiona líder quilombola

Givânia Silva

O assassinato de João Alberto Silveira Freitas, homem negro, por seguranças do supermercado Carrefour, em Porto Alegre, chocou o país nas últimas semanas e evidenciou, mais uma vez, a urgência do debate sobre o racismo no Brasil. As investigações sobre a motivação do crime ainda estão em andamento, porém, no mesmo dia, o vice-presidente da República, Hamilton Mourão, lamentou o ocorrido, mas afirmou que não existe racismo no Brasil. O presidente da República, Jair Bolsonaro, afirmou ser “daltônico: todos têm a mesma cor”. A negação do racismo pelas autoridades públicas não é novidade, de acordo com levantamento da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e da Terra de Direitos, desde o início da gestão Bolsonaro, 49 manifestações ou declarações racistas foram feitas pelo presidente, deputados federais e estaduais, vereadores e membros do Judiciário. Em entrevista ao Edição do Brasil, Givânia Silva, cofundadora da Conaq, explicou como a negação do racismo prejudica a luta antirracista.

Existem diferenças entre o crime de racismo e o racismo estrutural?
Racismo é crime e ponto. Seja individual ou estrutural. Chamamos de racismo estrutural o entendimento de que há sociedades estruturadas com base na discriminação que privilegia algumas raças em detrimento de outras. Ele está tão entranhado em nossos costumes que quase não o percebemos e, muitas vezes, o negamos. Um exemplo prático é o acesso a lugares até então considerados de elite, como as universidades. Outro caso é o uso de termos pejorativos que se incorporaram em nosso vocabulário.

E esse racismo estrutural acaba encontrando eco dentro das instituições. Quando propagado a partir das instituições, tem um alcance mais amplo. Ele afeta um maior número de pessoas, impede que elas tenham acesso a direitos, prejudica as políticas públicas, nega a existência de indivíduos e a existência do racismo. A nossa pesquisa “Quilombolas contra racistas” mostra que as principais lideranças das instituições que deveriam combater o racismo mediante lei ou promover políticas de combate ao racismo, como é o caso do Poder Executivo, propagam o racismo, seja por meio do reforço de estereótipo, da negação do racismo e da escravidão ou de reforçar uma supremacia branca.

Na sua análise, por que o Brasil ainda não conseguiu avançar apropriadamente no combate ao racismo?
Quando se nega a realidade de um problema é difícil combatê-la. O racismo está tão entranhado em nossa sociedade que muitos acabam não reconhecendo a sua existência. Para enfrentá-lo é preciso abrir mão de privilégios e realmente defender a igualdade. E isso passa pela reparação histórica. Não há, por exemplo, que se falar em meritocracia em uma sociedade que constantemente exclui grupos sociais e prejudicou seu acesso a direitos. É como participar de uma corrida em que seu oponente tem uma vantagem de 500 anos de privilégios.

Muitas vezes o discurso de “somos todos iguais” é usada para desqualificar a luta antirracista. Como essa negação prejudica o combate contra o racismo?
A negação do racismo por si só é um discurso racista. Assim como é racismo a utilização de doutrinas já superadas como a mestiçagem e a democracia racial. Em um país onde há um genocídio contra o povo negro em curso, negar o racismo é de extrema gravidade. A frase “somos todos iguais” deveria fortalecer e não minimizar a luta antirracista. E só seremos todos iguais quando os grupos privilegiados reconhecerem seus privilégios e lutarem contra a exclusão de outros grupos sociais e para que eles tenham acesso a direitos que lhes foram constantemente negados.

Em sua opinião, como tem sido a condução do combate ao racismo no Brasil pelas autoridades públicas?
De janeiro de 2019 a 6 de novembro de 2020, mapeamos 49 declarações racistas de autoridades públicas. Esse governo nega a existência de racismo, dificulta o acesso a direitos dos grupos vítimas desse crime e utiliza o argumento de liberdade de expressão para minimizar o impacto de suas falas. Como o governo pode combater o racismo se o nega?

Qual é o papel dos brancos na luta antirracista? Em primeiro lugar é necessário que se reconheça a branquitude como um lugar de privilégios e usar essas vantagens para combater esse mal que expõe a vida de tantas pessoas à desumanização.