A saúde pública no Brasil é um problema antigo, porém, a COVID-19 veio para agravar ainda mais a situação. Hospitais lotados, demora no atendimento, falta de médicos, insumos e leitos para internação são algumas das dificuldades encontradas. O governo federal investe na área, mas os recursos são escassos e mal geridos, sendo assim, a responsabilidade recai sobre os estados e municípios que também não possuem dinheiro para tal. Enquanto isso, a população que depende do sistema público de saúde agoniza esperando a solução. Para falar sobre o assunto, o Edição do Brasil entrevistou Gonzalo Vecina Neto, médico sanitarista e professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP).
Qual o atual panorama da saúde pública no Brasil?
O Sistema Único de Saúde (SUS) é importante para garantir a saúde como um direito de todos os cidadãos. A atual situação de pandemia, por exemplo, seria muito mais dramática e desastrosa se não tivéssemos esse mecanismo gratuito. Mas o SUS tem seus problemas, sendo um modelo subfinanciado e com graves problemas de gestão. Não há dinheiro suficiente para atender a sua demanda.
Também temos um obstáculo no ordenamento do serviço de saúde. Existe a rede pública municipal e a estadual, porém, as duas não dialogam entre si, o que favorece a má utilização dos recursos existentes. A integração das redes teria que ser discutida para saber quem ficará com a gestão.
Apenas 23% da população possui plano de saúde. O restante, ou seja, a grande maioria depende do SUS. Ele é o responsável por gerir o Programa Nacional de Imunização, vigilância epidemiológica e vigilância sanitária. Além disso, o modelo realiza gratuitamente 95% dos transplantes e das hemodiálises no Brasil, fornece 100% dos medicamentos aos transplantados, assim como supre 100% da necessidade de remédios de alto custo e faz o tratamento de 100% dos pacientes hemofílicos.
Faltam profissionais capacitados?
No Brasil, temos 1 médico a cada 600 habitantes. A título de comparação, a média dos países europeus é 1 a cada 300. Isso falando de forma geral, pois quando buscamos especialistas, a carência é ainda maior. Além disso, eles estão mal distribuídos pelo país. Com a profusão das faculdades de medicina deveremos melhorar a quantidade até 2026. No entanto, serão médicos mal formados, pois não existem hospitais escola em número suficiente para oferecer suporte educacional e equipamentos necessários. Nosso país está despreparado para prestar um atendimento de saúde de qualidade para a população.
O Brasil é um país que investe em saúde?
O gasto no setor é muito inferior ao que deveria. Atualmente, o Estado investe cerca de R$ 240 bilhões do seu orçamento com saúde, sendo metade do valor pelo governo federal, R$ 60 bilhões pelo estadual e R$ 60 bilhões pelo municipal. A quantia integral é de 9,5% do Produto Interno Bruto (PIB), correspondente a 4,5% público e 5% privado. Esse total dividido pela quantidade da população brasileira (210 milhões) resultaria em pouco mais de R$ 1 mil per capita ano. Para se ter uma ideia, os planos de saúde custaram R$ 200 bilhões, em 2019, para atender 50 milhões de pessoas, o equivalente a R$ 4 mil per capita ano. Ou seja, o Estado gasta 4 vezes mais com o SUS.
Nos países europeus, o valor desembolsado chega a 10% do PIB. A média dos países membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) é de 13%. Nos Estados Unidos, apesar de não possuírem um sistema de saúde universal, investem 18% do PIB com assistência. No Brasil, gastamos menos até que a Argentina, Chile e Uruguai.
Quais são os impactos da falta de investimento?
Há consequências quando se gasta pouco. Se os problemas já eram graves, com a pandemia se tornaram ainda piores. Quando a crise sanitária começou tínhamos 7 leitos de UTI a cada 100 mil habitantes. Hoje, a quantidade está em 8,8 por conta da construção de hospitais de campanha. O adequado para não sobrecarregar o sistema de saúde seria ter 20 a cada 100 mil habitantes. A título de comparação, a Itália passou por toda aquela dificuldade e possuía 12 leitos a cada 100 mil habitantes. Junto a tudo isso, há falta de insumos, profissionais e equipamentos como os essenciais respiradores.
Esse caos atual no setor é um problema antigo? Falta fiscalização?
Esse inconveniente já vem de longos anos e ficou ainda mais em evidência por conta da pandemia de COVID-19. Houve má administração, faltou planejamento e gasto consciente dos recursos públicos. Os transtornos foram sendo mascarados e só cresceram nas últimas décadas. A imprensa, Ministério Público, Judiciário, cidadãos, entre outros órgãos e entidades fazem o seu papel de fiscalização e apontam as deficiências do Estado, mas nem sempre são capazes de trazer à tona questões mais profundas sobre o tema para atuar diretamente na raiz do problema.
O Brasil está perto de um colapso no sistema de saúde?
O colapso é quando os leitos atingem 100% de sua capacidade e não há como atender novas pessoas. Elas ficam aguardando surgir uma vaga. A situação é muito séria, porque os médicos muitas vezes precisam escolher quem tem mais chances de sobreviver e quem tem menos. Isso já aconteceu em diversas capitais como Manaus (AM), Belém, Fortaleza (CE), (PA) e São Luís (MA). O Rio de Janeiro também esteve muito perto disso. Não podemos falar em colapso nacional, e sim nas cidades.
Qual a maior dificuldade atual?
Fazer com que as pessoas fiquem em casa, porque ainda não temos medicamentos eficazes e nem vacina para curar a doença. Nós temos que insistir no isolamento social. Sem ele, a pandemia dificilmente será controlada. Além de evitar um colapso na saúde, o grande desafio é chegar com o menor número de mortes e infectados possível quando a imunização estiver disponível para a população.