Os efeitos causados pela pandemia do coronavírus podem ser sentidos nos segmentos social, econômico e político. Prova disso é que, a cada dia, o presidente Jair Bolsonaro perde apoio, seja de parlamentares aliados ou de apoiadores, e já há um pedido de impeachment, na Câmara dos Deputados, de autoria do deputado Alexandre Frota (PSDB). Para comentar sobre o tema, o Edição do Brasil conversou com o cientista político Rudá Ricci.
Atualmente, Bolsonaro está isolado politicamente. Por que isso aconteceu?
O motivo inicial foi o desemprego e a precarização do trabalho dos empregados. Temos 38 milhões de brasileiros sem carteira assinada. As reformas trabalhistas e a lei da terceirização, aprovada durante a gestão Temer, associadas à reforma da Previdência e congelamento dos gastos sociais por 20 anos debelaram o fraco sistema de segurança social que tínhamos. Houve uma ligeira melhora na avaliação do governo Bolsonaro no final do ano, fruto do uso do 13º salário e contratações sazonais. Então, veio a crise do preço do barril do petróleo, que começou derrubando as bolsas de valores; e a COVID-19. Sem sistema de proteção social e com um governo sem capacidade técnica para dar soluções, a população percebeu que está sem direção para a economia e para reduzirmos o risco da pandemia. Pior: toda pauta liberal está em suspeição, já que não consegue produzir saídas para momentos de crise como o que vivemos.
Uma pesquisa realizada pelo Atlas Político revelou a queda de apoio: mais de 47% dos brasileiros já aprovam o impeachment de Jair Bolsonaro. Nas próximas semanas, com o avanço do número de contaminados e mortos pela COVID-19, baterá o desespero social. Sem emprego e apoio governamental, podemos ingressar num caos nunca antes visto no Brasil. O isolamento de Bolsonaro não se dá por seus exageros retóricos, mas pela incapacidade de dirigir o país, pelo anacronismo da agenda liberal neste momento de crise mundial e pela percepção da população de ameaça crescente.
Existe clima político para o impeachment ser aceito?
Há clima político para o impeachment. Mas, há duas questões que antecedem. A primeira: o que fazer no dia seguinte? Não estamos preparados para alterar o descontrole econômico e de resposta estatal, fruto das reformas irresponsáveis que foram aprovadas no Congresso Nacional no último período. Há iniciativas em curso que podem mudar esta situação, como as articulações entre governadores e o presidente da Câmara dos Deputados, com o objetivo de criar um governo paralelo que oriente a população e crie alternativas à altura do caos social que se desenha. Também é promissor o esboço de unidade das esquerdas, a partir de uma carta aberta envolvendo PT, PSOL, PDT, PSB, PCB e PCdoB.
A segunda questão, mais aguda, é: Bolsonaro radicaliza suas posturas e aposta no caos (propondo abertura do comércio e a adoção do isolamento vertical) com a nítida intenção de dar manutenção ao seu apoio – ainda que em queda – de segmentos sociais extremados e fanáticos. Quantos são? Os cálculos mais modestos, baseados em pesquisas do Datafolha e Vox Populi, indicam 15% da população brasileira, mais de 30 milhões de pessoas. O impeachment poderá incendiar este segmento fanático. Temos como enfrentar uma situação política ainda mais instável em meio ao caos social que a recessão associada à crise sanitária? Sem respondermos este conjunto de questões, o impeachment pode se apresentar como aventura. Há, contudo, outras possibilidades de queda de Bolsonaro, caso o presidente resolva enfrentar o Supremo Tribunal Federal (STF) e não cumprir suas decisões a respeito do isolamento social.
O comportamento de Bolsonaro ao incitar a volta do comércio e gerar aglomerações, mesmo contraindicado por órgãos de saúde, pode ser classificado como crime de responsabilidade?
Bolsonaro já cometeu crime de responsabilidade em, ao menos, 9 situações desde que assumiu o governo. Mas, a questão é se já estamos preparados para o momento de sua queda. O impeachment, em termos políticos, não é o mais importante; o fundamental é o day after (dia seguinte).
É possível parar as falas e atitudes contraditórias do presidente?
O Judiciário está impondo diversas derrotas a Bolsonaro e governadores – como Zema, em Minas Gerais – que ameaçam desrespeitar as orientações do Ministério da Saúde e Organização Mundial de Saúde (OMS). Continuará assim até que o presidente decida romper de vez com as regras institucionais e decidir enfrentar o STF. Aí, terá chegado ao limite.
Você acha que as atitudes do presidente, em contrariar as autoridades da saúde, têm algum embasamento político pensando na sua reeleição?
Considero Bolsonaro desequilibrado e despreparado. Não se trata de um ator político preparado ou sagaz. É um erro primário considerar alguma racionalidade ou estratégia política bem definida. Em 27 anos como parlamentar, nunca esboçou qualquer predicado político nesta direção. Tanto que, bastou assumir o poder que começou a perder apoios aceleradamente. Terminou o ano como o presidente eleito com menor aprovação popular de toda história recente, desde Sarney. O que está tentando desesperadamente? Primeiro, tentou enfrentar a perda de apoios sociais e a ofensiva da oposição, anunciando manifestações e panelaços. Tentou de tudo: apoio à manifestação contra o Congresso (dia 15 de março), contrapanelaços (30 minutos após a realização de outro, convocado pela oposição), vários pronunciamentos afirmando que a pandemia era exagero, para que o comércio fosse reaberto e nada deu certo. No momento, ameaça baixar um decreto para obrigar o comércio a abrir, refutando a quarentena e o resguardo social. Os seus atos, como se percebe, são cada vez mais radicais e estão em rota de colisão com todas as instituições da nossa República e até com ministros e militares.
Recentemente, Bolsonaro voltou atrás e parou de incitar as pessoas a saírem de casa. Por que isso aconteceu?
Bolsonaro já foi humilhado pelo ministro da Saúde no sábado, dia 28 de março. Na entrevista coletiva, Luiz Henrique Mandetta desautorizou publicamente todas as falas recentes do presidente. Soube que houve uma rebelião, pela manhã, de diretores e técnicos do Ministério, provocando uma longa negociação interna. Soube, ainda, que militares passaram a apoiar as posições técnicas e restritivas de Mandetta. Portanto, na prática, há uma “reconversão” do governo federal. Pouco importa se Bolsonaro fará a mudança de percurso ou não. Ele já não decide sobre a postura do governo como já deixou claro o vice-presidente Hamilton Mourão.
O que um novo impeachment pode causar para a política e economia nacional?
Um novo impeachment colocará o país num campo de forte insegurança e instabilidade. Estaremos alinhados, ainda que num cenário mais ameno, com as instabilidades recentes que ocorreram no Paraguai e Bolívia. A queda de um presidente, de fato, é uma lei atrasada, empregada para a eterna chantagem de parlamentares sobre o Executivo. A lei adequada seria o Recall ou Revogação do Mandato Eletivo pelo eleitor, o mandante do poder do representante. Somos nós, cidadãos, que devemos decidir se um representante eleito cumpre com suas funções. Somente assim teríamos soluções mais equilibradas que alinhariam os parlamentos à vontade popular e não o contrário. Vivemos, há anos, uma guerra de egos no mundo político brasileiro. Deixamos de pensar em projetos nacionais. No máximo, o alto empresariado se impõe sobre o parlamento: reformas antiestatizantes, redução da proteção social e ao trabalhador (visando baixar o custo trabalho), nenhuma punição à sonegação de empresas, tributações regressivas, redução da capacidade de intervenção estatal. Desta maneira, ficamos reféns do que uma elite com mente estamental, de casta, quer para ter mais lucros e não superar a profunda desigualdade social que nos caracteriza. Maior poder aos cidadãos e menos aos eleitos é a única solução para abrirmos uma importante discussão cívica entre nós. A maioria dos brasileiros não é extremada e muito menos bolsonarista.