Antes mesmo do homem nascer, uma série de expectativas são impostas ao gênero. Não chore, não fale de sentimentos, não seja sensível, não rebole, não seja vaidoso, não use isso ou vista aquilo são alguns dos comportamentos esperados. Caso o menino ouse quebrar essa perspectiva, a ordem vem sem piedade: “Vire homem!”. A masculinidade da forma como é construída produz homens agressivos e com uma enorme dificuldade em falar sobre seus sentimentos. Para repensar a forma como os homens são criados, surgiu o conceito de masculinidade tóxica e para aprofundar neste tema, o Edição do Brasil conversou com o psicanalista Marcell Santos.
O que é a chamada masculinidade tóxica?
É uma forma repressiva no qual o comportamento da pessoa precisa ser baseado na lógica cultural do “macho”. Algumas características são marcantes, por exemplo, a força física como um ponto de grande vantagem. Para isso, as emoções precisam ser reprimidas e a hipersexualização é forte, bem como a violência e agressividade. Podemos definir a masculinidade tóxica como perfis que diferenciam aquilo que é de menino e o que é de menina e seguem esta regra.
Qual a relação da masculinidade tóxica com o machismo?
A masculinidade tóxica é o resultado pessoal vindo da cultura machista. Todos nós temos desejos subjetivos a serem realizados, porém, muitos deles são escondidos e não realizados quando vão em direção contrária à cultura familiar e social. Uma pessoa que vive em uma sociedade que define o que é de menino e o que é de menina limita o desenvolvimento psíquico do humano, causando pressões, traumas e conflitos psicológicos, já que essa pessoa vai precisar abrir mão de seu desejo mais íntimo para responder a um papel socialmente estabelecido e engessado.
Esse tipo de comportamento acontece desde que o mundo é mundo?
Se partirmos da evolução humana, a partir dos homens das cavernas, temos o mito do homem que puxava as mulheres pelos cabelos, o que caracteriza um comportamento completamente machista e tóxico. Se formos para o lado judaico cristão não ficamos de fora, já que ele enxerga, em vários momentos, a mulher como um ser inferior ao homem. Aponto que o machismo e a masculinidade tóxica estão em voga desde o primeiro nascimento do humano.
Por que esse assunto está em evidência atualmente?
Segundo o último Atlas da Violência, em 2017, mais de 4 mil mulheres morreram. Isso quer dizer que falar de machismo e masculinidade tóxica é mais do que necessário. Tornar esse assunto central é fazer com que os homens possam se questionar sobre o que estão fazendo com a vida deles e de outras pessoas. É uma tentativa de salvar vidas, tanto de mulheres quanto de homens. Digo dos homens também, porque muitos sofrem pela masculinidade tóxica, àqueles que não se aderiram ao meio social extremamente machista e falocêntrico são vítimas diretas da masculinidade tóxica.
O que seria um exemplo de comportamento caracterizado como tóxico?
Poderia passar dias citando exemplos, mas um é o fato do homem jamais poder negar sexo, a masculinidade tóxica faz do homem uma máquina de sexo, um animal irracional. Isso é um perigo, porque tal imposição é a base da cultura do estupro. Outro exemplo que escutamos muito quando criança é “menino não chora, menino tem que ser forte”. Reprimir sentimentos causa uma tensão psíquica e, alguns homens não possuem dinamismo suficiente para descarregar suas forças mentais reprimidas em outros lugares. Eles, então, podem depositar essa frustração nas mulheres, sejam elas parceiras, irmãs, filhas, etc. E isso é o que mais acontece. A masculinidade tóxica pode te matar no trânsito, no estádio, na padaria ou em qualquer lugar, porque os meninos são ensinados a resolver sua vida na porrada e no grito. Não são criados para dar vazão a sua agressividade de outra forma, isso é uma característica masculina e muito tóxica.
Como a masculinidade tóxica afeta as mulheres e os próprios homens?
Ela causa nas pessoas um grande problema de exaustão. Responder ao desejo da sociedade e ignorar seus próprios anseios exige, cada dia mais, uma força imensa para manter seus anseios reprimidos. Esse ato cansa e essa exaustão pode ser liberada rapidamente com violência. Na psicanálise, nós sabemos que a violência é uma forma muito rápida de jogar para fora as tensões que insistem em se estabelecer no psiquismo. As mulheres sofrem bastante pela violência que a masculinidade impõe. Elas já saem de casa com medo. Temor de terem seus corpos invadidos, de serem violentadas verbalmente, com xingamentos em forma de elogios e olhares maliciosos. Além disso, os números mostram o aumento do feminicídio.
É possível desconstruir esse comportamento?
Sim, com psicanálise, terapia, grupos focais de discussão e ensinando os meninos que seus sentimentos podem ser demonstrados. A melhor forma de tratar a masculinidade tóxica é fazer com que a pessoa descreva e diga quais são seus problemas. A palavra é a única forma de ressignificar tudo de ruim que temos.
Esse termo traz à tona o conceito de “novas masculinidades”. O que é isso?
É a tentativa de salvação da humanidade. É romper com os estereótipos de gênero, é permitir que o homem tenha uma possibilidade de um novo olhar para suas demandas e questões sociais. É mostrar que é possível um homem não ser construído a partir de uma norma fálica, patriarcal, é respeitar as mulheres, chamar atenção de amigos que apresentarem características machistas. Novas masculinidades é permitir que o homem saia dos velhos padrões, que seja livre de estereótipos repressores, que lute por equidade e condições mentais e sociais mais saudáveis. Novas masculinidades é o futuro.