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Número de homens condenados por aborto é maior que o de mulheres no país

Era um domingo de Carnaval quando, por volta de 14h30, José Antônio de Jesus chamou sua companheira Maria Silvina Perotti para ir ao supermercado. Passando pelo bairro Nova Suíça, na capital, em um momento de distração, o homem disparou dois tiros contra a cabeça da mulher que estava grávida de 7 meses dele. O motivo, segundo uma amiga de Maria, era justamente a inconformidade com a gravidez da mulher com quem era casado. Dados exclusivos da Secretaria de Estado de Administração Prisional de Minas Gerais (Seap-MG) ao Edição do Brasil apontam que, atualmente, duas mulheres e 16 homens estão presos enquadrados nos artigos 124 e 125 da Lei 2.848, que configuram aborto em si mesma e o aborto provocado por terceiro, sem ou com o consentimento da gestante. E os porquês dessa discrepância podem estar relacionados ao feminicídio (homicídio cometido contra mulheres motivado por agressão doméstica ou discriminação de gênero), violência doméstica e machismo.

Não era a primeira gravidez de Maria, segundo a sentença, a amiga da vítima narra que, quando trabalhavam juntas, a mulher confidenciou que estava grávida e muito nervosa: “Ela não sabia como ia falar com ele (José)”, lê-se no trecho. Ainda segundo o documento, Maria chorava muito e sequer chegou a comentar com o marido da gravidez. Mesmo contra a vontade, fez um aborto. “Ela fez isso por medo da reação dele”. A vítima voltou a engravidar, mas dessa vez não cederia, conforme depoimento da amiga: “Ela disse ‘dane-se, dessa vez eu vou ter esse filho, ele querendo ou não’”. E que, apesar do homem estar indiferente à gravidez, Maria estava muito feliz. Alguns meses depois, essa indiferença se transformaria e ceifaria a vida dela. O bebê, no entanto, sobreviveu.

Em Minas, as 18 pessoas presas por aborto são naturais de Belo Horizonte, Brasília, Capinópolis, Carmo do Paranaíba, Goiânia, Itambacuri, João Pinheiro, Mateus Leme, Padre Paraíso, Paracatu, Passos, Ribeirão das Neves, Serro, Timóteo, Três Pontas, Uberaba e Varginha. No Brasil, segundo o último Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, em 2016, essa diferença também era vista: 84 pessoas estavam presas pelo crime de aborto, 7 eram mulheres e 77 homens. Em 2014, havia 43 mulheres e 727 homens presos pelo delito, considerado um crime contra a vida.

Não há dados recentes nacionais sobre essa população carcerária. Informações como se essas pessoas respondem em liberdade, se ainda estão presas, quanto tempo da pena cumpriram ou em quais artigos, especificamente, foram enquadradas não são divulgadas pelos órgãos competentes. Sem a coleta de dados das autoridades, seria necessário pesquisar no site de cada tribunal do país, comarca por comarca, todas as sentenças em que consta a palavra “aborto”. Só em Belo Horizonte, a palavra gera um resultado de 920 sentenças que precisam ser analisadas, uma por uma. E, ainda assim, poderia apresentar um número subnotificado, já que muitos desses casos correm em segredo de justiça.

Em BH, dois juízes são responsáveis pelo Tribunal de Júri, grupo de 7 pessoas sorteadas que julgam os acusados de crimes contra a vida. Ou seja, teoricamente, cada um deles julga metade de todos os casos de aborto que chegam a comarca da capital. Um deles, o juiz sumariante Marcelo Fioravante avalia que os presos mais comuns são agressores. “O aborto não consentido inclui todo tipo de violência contra a mulher e pode ser decorrente de uma agressão ou de um crime de homicídio contra a gestante, sendo que o autor sabe que a mulher está grávida e, portanto, está cometendo dois crimes. O leigo pode até imaginar que há muitas pessoas de clínicas clandestinas que são levadas em julgamento por aborto, mas não são”, afirma.

Segundo o juiz, o feminicídio reflete nos números carcerários do aborto. “O perfil de réu preso por aborto relacionado ao feminicídio é o mais comum. Em segundo plano, é a violência urbana praticada contra a grávida”, diz.

Júnia*, então grávida de 6 meses, também é um retrato da tentativa de aborto relacionado à violência doméstica. Não passava de 9h, quando seu companheiro não se intimidou com a presença de pessoas e, na Praça Rio Branco, no Centro de BH, após uma discussão, começou a socá-la e desferir chutes em sua barriga. Atendidos por policiais militares, mãe e filho sobreviveram.

Por outro lado, a antropóloga Debora Diniz alerta que devido à fragilidade dos dados brasileiros é possível que esses números camuflem o cenário como um todo. “Até hoje sequer sabemos ao certo quantas mulheres enfrentam à criminalização. Muitas são presas logo no início da investigação criminal, depois são liberadas e passam a responder com suspensão condicional do processo, o que significa que não figuram entre pessoas presas pelo crime. Destaco isso porque é possível que o número de mulheres criminalizadas, embora não necessariamente presas, por aborto seja maior que o de homens”.

Aumento do feminicídio
O Atlas da Violência 2019, raio-x dos homicídios que acontecem no Brasil, indica crescimento dos homicídios femininos em 2017, com cerca de 13 assassinatos por dia. Ao todo, 4.936 mulheres foram mortas, o maior número registrado desde 2007.

Um dos indicadores que o estudo usa para medir o feminicídio é a taxa de assassinatos de mulheres que ocorrem dentro das residências. Evidentemente, o número real de feminicídios não é igual ao de mulheres mortas dentro de casa, até porque vários casos ocorrem fora da residência, mas ainda assim fica evidente a evolução do crime no país. Do total de homicídios contra mulheres, 28,5% ocorrem dentro da residência e, ao mesmo tempo em que a taxa de homicídios fora da residência diminuiu 3,3%, as mortes dentro de casa aumentaram 17,1%, em especial, com o uso da arma de fogo, que cresceu 29,8%.

Entretanto, é bom esclarecer que não se sabe ao certo se o avanço dos registros de feminicídios pelas polícias reflete efetivamente aumento no número de casos ou diminuição da subnotificação. Uma vez que a Lei do Feminicídio, criada em 2015, é relativamente nova, o que indica que as autoridades judiciárias, ao longo desses 4 anos, ainda estariam aprendendo a tipificar o crime.

*O nome da vítima foi alterado.