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“Pacote anticrime proposto por Moro padece de legitimidade”

Em um documento de 81 páginas, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) se manifestou contra alguns pontos do chamado pacote anticrime proposto pelo ministro da Justiça, Sergio Moro. Entre eles, a execução antecipada da pena; as mudanças no instituto da legítima defesa, em especial aos agentes de segurança pública; a criação do confisco alargado; a interceptação de advogados em parlatório, entre outros. Sobre o material crítico à proposta do governo, o Edição do Brasil entrevistou Igor Soares, mestre em direito processual, coordenador do curso de direito do UniDoctum e membro da Comissão de Educação Jurídica da OAB-MG.

Quais são as principais críticas da OAB ao pacote anticrime?
As críticas da OAB revelam preocupação dos juristas com a latente inconstitucionalidade do projeto, pois várias de suas disposições contrariam expressamente o texto da Constituição da República de 1988, além de sua evidente imposição pelo governo federal, sem que houvesse, previamente, o debate com a sociedade civil. Segundo o parecer da OAB Federal, o projeto, em várias oportunidades, fere a garantia da presunção de inocência, o direito de defesa e o devido processo. Há, ainda, falta de uma exposição clara e precisa sobre os resultados do pacote, sobretudo no aspecto social, afinal várias disposições desencontram a proteção aos direitos humanos.

Quais pontos são apoiados pela entidade?
A OAB Nacional apresenta duas possibilidades: rejeição integral de alguns pontos ou a reescrita das propostas com o devido aprofundamento sobre as suas consequências. Não há apoio literal, mas recomendações para ampla discussão dos pontos passíveis de aprovação. Entre eles, a criminalização do financiamento irregular de campanha, o chamado caixa 2; a regulamentação das competências da Justiça Eleitoral; alteração do regime jurídicos federais; a possibilidade de realização de audiências por videoconferência, entre outros.

Por que a OAB é contra a prisão em 2ª instância?

Não somente a OAB Nacional, mas toda a comunidade jurídica ainda não conseguiu entender, com precisão, quais os elementos tendentes à prisão em segunda instância. O que há é uma decisão equivocada, proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que desconsiderou a literalidade do art. 5º, inciso LVII, da Constituição da República de 1988, bem como do art. 283 do Código de Processo Penal. Em ambos os produtos legislativos, o constituinte e o legislador foram claros: somente é possível exigir o cumprimento da sentença penal condenatória, em seu teor, a partir da noção de culpa na conduta delituosa, após o trânsito em julgado.

O que é o trânsito em julgado?
Uma decisão transita em julgado quando se acabam os recursos cabíveis ou o condenado desiste de recorrer. Por isso, o STF usou de argumentos políticos para discutir o problema da criminalidade na esteira do Estado-Judiciário, o que deve ser feito diante do Estado-Legislativo e do Estado-Executivo. O STF alegou ter agido com base em mutação constitucional, mas essa mutação não pode promover interpretações em prejuízo das pessoas acusadas, muito menos acarretar o retrocesso social. Ninguém duvida do crescente número de crimes, mas esse problema não é processual, mas relacionado à ineficiência das políticas públicas.

O que é a criação do confisco alargado?
É a permissão da tomada de bens de pessoas condenadas decorrentes da prática de crimes específicos, com pena superior a 6 anos, como o tráfico de drogas e associação criminosa. No argumento também seriam tomados os bens sem origem comprovada, de acordo com os rendimentos da pessoa e o valor dos bens. Essa proposta seria incluída no art. 91A, conforme projeto. Segundo a OAB Nacional, a sugestão fere a garantia da presunção de inocência e não é clara o suficiente para entender suas consequências. Posso incluir que tal proposta fere a garantia do devido processo, já consagrado na Constituição da República de 1988, no que se refere à injustificada expropriação de bens que, sequer, é objeto discutido no processo.

Por que as mudanças do instituto da legítima defesa, em especial aos agentes de segurança pública, são consideradas problemáticas?
No parecer elaborado pela OAB Nacional, os juristas consultados apresentam inúmeras divergências sobre o assunto. Há duas propostas sobre o tema: a redução da pena até a mesma ou até mesmo a sua inaplicabilidade se o excesso decorrer de medo, surpresa ou violenta emoção. Segundo a teorização, a legítima defesa pode ser entendida como a repulsa à agressão injusta, atual ou iminente, contra direito próprio usando dos meios moderados. Aquele que age para além dos meios moderados, assim, age em excesso. A proposta pretende readequar o excesso aos agentes de segurança e policiais, que, assim, poderiam até mesmo se desvincular da aplicação de sanção penal se comprovado medo, surpresa ou violenta emoção. Outra alteração pretende adequar a legítima defesa aos casos em que o agente pratica o crime “em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado”, ou, ainda, diante da prevenção de “agressão ou risco de agressão à vítima mantida refém”. Alguns juristas afirmam que tal proposta cria verdadeira “licença para matar”, pois o agente, antes envolvido com a precisão de seus atos, agora poderá praticá-los amparado em uma das propostas. O Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, inclusive, demonstra preocupação com a ofensa aos princípios da igualdade e da proporcionalidade, porque cria-se duas categorias de cidadãos, que, diante do mesmo fato, podem ter decisões distintas.

No que consiste a interceptação de advogados em parlatório? Seria um procedimento padrão para qualquer caso?
Ao tratar da organização dos presídios federais, é proposta a possibilidade de gravação entre o advogado e seu cliente no parlatório, que é a sala na qual o advogado, de forma reservada, entrevista e conversa com seu cliente a fim de dar-lhe informações processuais e ainda delinear estratégias de defesa. Segundo o texto do governo, a ideia é impedir a comunicação entre os líderes de organizações criminosas presos e demais envolvidos nas práticas delituosas. A gravação deve ser autorizada por um juiz de direito.

Essa gravação fere algum direito?
Essa proposta do jeito que está posta ofende basicamente a garantia da ampla defesa, já que o advogado e o seu cliente deixarão de conversar abertamente sobre o fato criminoso com receio do que pode ser gravado, além de ser uma ofensa direta ao Artigo 133 da Constituição que prevê a inviolabilidade do sigilo profissional e o serviço prestado pela advocacia. Essa disposição é inconstitucional. Perde o cliente que deixará de se relacionar com seu advogado e perde o advogado que não terá condições de organizar-se para promover a defesa técnica. Mais uma vez, o pacote anticrime padece de legitimidade. A esperança de sua aprovação repousa mais em seu autor, o ex-juiz Sergio Moro, do que na reflexão sobre seu conteúdo.